Baile, por Mirtes Scalioni

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Já faz mais de um ano que Malu está sem empregada, que ela costuma chamar de secretária do lar, quase um jeito de amenizar a inevitável relação de intimidade que passa a existir entre a dona da casa e a trabalhadora doméstica. Esquerda mais ou menos convicta desde jovem, sempre se sentiu meio incomodada com aquele vínculo de patroa/empregada. Por isso, pauta sua vida de empregadora pelo estrito cumprimento da lei: carteira assinada, férias regulares, recibos assinados, tudo absolutamente correto e legal.

Mas, desde que começou a pandemia, Malu entrou num bom acordo com a moça, a exemplo do que fizeram todas as suas amigas. Já passava dos 60 anos e temia se expor ao convívio da funcionária que vinha de ônibus para o trabalho todos os dias e, invariavelmente, se queixava do transporte lotado. Chegou até a pensar, num quase delírio, que por algum motivo que ninguém compreendia, o vírus não gostasse de frequentar aquelas lotações apinhadas de gente, tal o descaso do poder público com as idas e vindas dos trabalhadores deste Brasil.

De um jeito ou de outro, ela foi se adaptando à vida sem a secretária do lar. Organizada, aos poucos estabeleceu uma rotina de compras, cardápios de almoço e petiscos diários, limpeza vapt-vupt, faxina pesada e lavação de roupas. Seguindo conselhos de amigas, desistiu do ferro de passar e tudo o que tirava dos varais ia direto para as gavetas, depois de alisadas e acarinhadas pelas mãos da dona da casa.

Tudo caminhava dentro do previsto, da parceria do marido, atento e solidário, aos avisos que aprendeu a afixar em múltiplos papeizinhos nos imãs na porta da geladeira para que nada fosse esquecido – tudo funcionando. Menos as tampas dos tais recipientes de plástico dos mais variados tamanhos e formas, onde se guardava tudo, de sobras de feijão a pedaços de bolo, de agrião bem lavado para a salada de amanhã a fatias de maçã para o próximo suco. Malu aprendeu rápido que aqueles frascos se chamam tupperware. E que as benditas tampas desapareciam misteriosamente.

O mistério aumentou quando o marido, encarregado de guardar as meias nas devidas gavetas, queixou-se de que um ou outro par não estava completo. Ambos passaram a revirar a casa sempre que se lembravam do sumiço. Cadê os pés das meias? Cadê as tampas dos potinhos?

Não se pode dizer que, naquela noite, Malu tenha dormido preocupada com o sumiço. Sabia, racionalmente, que tudo seria devidamente encontrado numa busca ou faxina mais apurada em algum dia. O fato é que ela sonhou com um baile, alguma coisa meio clandestina e nebulosa, uma festa onde tocava uma orquestra esquisita e onde bailavam alegremente, mas meio furtivos, estranhos seres. Entre eles, ela viu, com nitidez, casais formados por solitárias meias avulsas das mais variadas cores e tamanhos enlaçados a tampas de tupperwares. Pareciam apaixonados. Só ela sabe com que alegria e sossego acordou no dia seguinte.

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