Carta da Coalizão Direitos na Rede aos parlamentares da CPMI das ‘fake news’

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Brasília, 17 de Setembro de 2019.

No último dia 4 de setembro, foi instalada no Congresso Nacional uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar “os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público, a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições de 2018, a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos, e o aliciamento de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio”, atendendo ao Requerimento do Congresso Nacional nº 1, de 2019, de autoria do Deputado Federal Alexandre Leite (DEM/SP) e outros parlamentares.

Considerando o amplo escopo da CPMI, a Coalizão Direitos na Rede, articulação de mais de 35 organizações da sociedade civil que atuam em defesa de uma Internet livre, aberta e democrática no Brasil, vem a público declarar sua preocupação em relação a possíveis consequências danosas à liberdade de expressão que podem resultar da associação do debate sobre as chamadas ”fake news” a uma ampla gama de outros assuntos que se referem a crimes que podem ser cometidos por meios digitais.

A desinformação, entendida como a produção e a disseminação proposital e articulada de notícias falsas com o objetivo de provocar danos, bem como os impactos sobre a democracia e o debate público, têm sido amplamente discutidos em todo o mundo. A importância do tema motivou a “Declaração conjunta sobre a Liberdade de Expressão e Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda”, publicada em 2017 conjuntamente pelos relatores especiais para a Liberdade de Expressão da ONU (Organização das Nações Unidas), OEA (Organização dos Estados Americanos), OSCE (Organização pela Segurança e Cooperação na Europa) e CADHP (Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos). A declaração fornece um conjunto de recomendações sobre como Estados, empresas de tecnologia e meios de comunicação devem responder à crescente influência das notícias falsas no debate público sem colocar em risco a liberdade de expressão.

No mesmo sentido, o grupo de especialistas em desinformação da Comissão Europeia publicou em 2018 um relatório que aponta que o problema da desinformação demanda múltiplas soluções, como a exigência de maior transparência para o funcionamento das plataformas digitais, a promoção de um ambiente de mídia plural e diverso, o fortalecimento do jornalismo e a educação para a mídia.

No Brasil, o tema vem sendo discutido em diversos espaços institucionais. Em junho de 2018, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) aprovou a Recomendação n° 4/2018, apontando para a necessidade de que medidas de combate às chamadas fake news ou notícias falsas levem em consideração a garantia do direito à liberdade de expressão. Em julho do mesmo ano, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) promoveu o seminário Internet, Desinformação e Democracia e uma oficina que contou com a presença de pesquisadores de diversas universidades do país, profissionais de tecnologia da informação, representantes de empresas do setor e de entidades de defesa de usuários. Na oficina, debateu-se formas de coibir a desinformação nos períodos eleitorais, como a criação de regras que assegurem a transparência das plataformas digitais e do funcionamento de seus algoritmos e a necessidade de a Justiça agir de forma célere para diminuir a disseminação de desinformação a partir das legislações existentes.

Considerando, portanto, a importância das investigações para a compreensão dos mecanismos de disseminação em massa de mensagens de conteúdo eleitoral no último pleito, através de recursos não declarados, por meio de plataformas de comunicação na Internet, e a necessária garantia da liberdade de expressão, a Coalizão Direitos na Rede publicamente manifesta aos membros da CPMI:

Apoiamos as investigações e apuração de fatos relacionados às eleições de 2018 que, até o momento, não obtiveram adequada resposta dos órgãos responsáveis. Por isso, acreditamos ser bem-vinda a iniciativa de organizar os trabalhos da CPMI em subcomissões, de forma a separar os objetos a serem investigados. Trata-se de um primeiro passo no esforço, que deve ser mantido, para que o amplo escopo de trabalho da CPMI não prejudique a elucidação dos fatos concretos e determinados em relação à produção e distribuição ilegal de conteúdos com motivação eleitoral no último ano.

Alertamos para a necessidade de uma conceituação aprofundada sobre o tema. O termo “fake news” ou “notícia falsa” não dá conta de um fenômeno mais amplo e complexo. Os documentos internacionais que tratam do tema têm utilizado o termo desinformação e apontado para a necessidade de se delimitar o escopo do termo, a fim de não cercear o debate público e calar vozes dissonantes. A desinformação, assim, seria definida como a construção de conteúdos objetivando de forma deliberada a distorção de fatos e dados e sua difusão visando provocar danos específicos.

Diante da complexidade do fenômeno de desinformação no atual contexto midiático e digital, e da impossibilidade de soluções simples para enfrentá-lo, alertamos para o risco do desenvolvimento de proposições legislativas que afetem direitos humanos como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a privacidade dos usuários de Internet. Neste sentido, a recente derrubada do veto presidencial à Lei 13.834/2019, visando a ampliação da pena para quem divulga desinformação em contexto eleitoral, é temerária. A criminalização generalizada dos usuários da rede mundial dos computadores é inaceitável e viola os padrões internacionais de proteção à liberdade de expressão.

Do mesmo modo, soluções que responsabilizem as plataformas digitais por conteúdos gerados por terceiros, em desacordo ao que diz o Marco Civil da Internet, ou que obriguem as plataformas digitais a remover automaticamente conteúdos também ferem a liberdade de expressão e estimulam a censura privada, na medida em que transferem para empresas a decisão do que pode ou não circular em plataformas que hoje se tornaram importantes espaços de debate público. Essa decisão se torna ainda mais problemática ao delegar às plataformas a prerrogativa de definir o que é notícia falsa, podendo com isso estimular a retirada de conteúdos que podem ser legítimos e de calar vozes críticas aos poderes constituídos. Como mostram os documentos internacionais sobre o tema, há outras formas mais eficazes de ação que poderiam ser cobradas das plataformas, como a transparência e a ampliação do controle dos usuários sobre os conteúdos que publicam e acessam, diminuindo os “efeitos bolha” e o modelo de monetização com base em uso de dados pessoais que estimula a criação e difusão da desinformação.

Reforçamos, portanto, que qualquer iniciativa para enfrentar o fenômeno das chamadas “notícias falsas” deve preservar a liberdade de expressão, o respeito à privacidade e observar o princípio da proporcionalidade. Essas iniciativas devem visar não ao cidadão comum, mas às “fábricas de desinformação”, ou seja, quem está produzindo e disseminando notícias falsas de forma planejada e massiva com fins econômicos ou políticos.

Por último, a Coalizão Direitos na Rede se coloca à disposição dos parlamentares para apresentar dados, pesquisas e análises que possam contribuir com os membros integrantes da CPMI e com o Congresso Nacional,tanto para o andamento das investigações quanto para o desenvolvimento de proposições orientadas pelas melhores práticas, para que a Internet continue a possibilitar um ambiente de livre para o debate de ideias e para o fortalecimento da democracia.

Coalizão Direitos na Rede

(Publicado pela Coalizão Direitos na Rede.)

 

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[18/9/19]

 

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