“Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas o cenário que a comunidade LGBTQIAP+ vive na sociedade é diferente

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Por Nathália Avelino*

Nos mês de junho é comemorado o mês do Orgulho LGBTQIAP+, a data foi criada para conscientizar e reforçar a importância do respeito a seus direitos básicos, como os políticos e sociais, assim como a amar como quiserem. Durante o mês são feitas ações de resistência e conscientização, inclusive promovendo a grande parada LGBTQIAP+ em São Paulo.

Entretanto, essa data possui uma história marcada por resistência e não começou hoje. Tudo começou em 28 de junho de 1969 em Nova York, no bar Stonewall, um local no qual as pessoas da comunidade iam para dançar e conseguirem ser quem eram. Porém, era comum sofrerem repressão e violência da polícia, até que um dia Marsha P. Johnson, mulher negra, trans, bissexual, soropositiva e trabalhadora sexual jogou um tijolo contra a polícia para dar um basta e começou uma revolta contra o Estado que impedia que a comunidade se relacionasse. Esse momento marcou o início de uma batalha árdua que perdura até hoje.

 

Um mês para nos darem a importância que merecemos

Nick Nagari, 25 anos, criador de conteúdo, palestrante e escritor sobre bissexualidade e transgeneridade acredita que termos esse mês reservado para falar sobre temas pertinentes à comunidade é importante, pois conseguimos atingir as pessoas de forma massiva e fazer com quem que grandes meios oficiais do governo, prefeituras, assim como pequenas e grandes empresas ouçam a comunidade, o que faz com que fique cada vez mais difícil ignorar a pauta. Nick acredita que o enfrentamento tem se mostrado cada dia mais exaustivo, pois “diariamente temos que lutar por respeito em vários âmbitos da nossa vida, é algo que vai além de uma ofensa ou xingamento, afeta toda a construção da nossa identidade, desde que somos crianças essas violências já nos atravessam mesmo sem sabermos o que somos. Então, como já somos marcados como diferentes, fora da norma, já sofremos essas consequências, o que afeta a permanência na escola, assim como dificulta a entrada na universidade e no mercado de trabalho”.

O escritor conta que atualmente faz um trabalho como porta voz da transgeneridade e bissexualidade pautado em uma pesquisa científica, acadêmica e séria, levantando dados para fugir da estatística de fala focada em apenas uma parte da comunidade. “Acho que essas conclusões acadêmicas embasam o pensamento da gente, sinto que como porta voz dessa comunidade, é minha responsabilidade também procurar essas informações em lugares mais confiáveis, juntando a minha vivência com pesquisa, documentação, informação, valorização e registro de vivências bissexuais e transsexuais”, esclarece.

Nick afirma que é de extrema importância pautar a questão racial nesse debate e que isso deveria comandar as discussões, afinal: “essa questão é interseccional, para entender que pessoas negras LGBTQIAP+ vão sofrer coisas diferentes, pois nossas opressões vão se interseccionar com o racismo. Não temos que olhar para as pessoas negras e pobres que estão em situação de vulnerabilidade? Para as trans e travestis que estão sofrendo essas opressões? De quem são as pautas que estão comandando nosso movimento político hoje? A quem elas servem e a quem elas poderiam servir se a gente olhasse mais para nossa população negra?”

Nick Nagari usa da sua voz e potência para transformar mentes e singularidades, confira sua conta no instagram e seus conteúdos @nicknagari. Foto: acervo pessoal

 

Sobre a invisibilidade bissexual Nick pacientemente nos esclarece que “nossa sociedade é toda dicotômica e binária, temos duas classes, uma que tem poder e uma marginalizada, então não é uma coincidência termos esse apagamento bissexual, precisamos entender e tentar quebrar isso, a bissexualidade é de fato uma possibilidade concreta, não uma invenção, fase, indecisão. Na prática fazemos isso criando cenários onde a bissexualidade aparece na mídia, nos jornais e nas discussões”.

 

É no coletivo que a mudança acontece

De acordo com o relatório Orgulho LBGTQIA+ 2022 da empresa mineira de pesquisas Opinion Box, 47% de seus entrevistados se consideram muito envolvidos na comunidade e 37% avaliam que contribuem muito para as pautas. Existem hoje ONG’S e Associações que promovem ações em prol da conscientização  da sociedade. A ONG TODXS @todxsbrasil é uma organização sem fins lucrativos que promove a inclusão das pessoas LGBTQIAP+ na sociedade com iniciativas de formação de lideranças, pesquisa, conscientização e segurança. A ONG existe para empoderar a comunidade, educar a sociedade e transformar o Brasil em um país realmente incluso e sem discriminação.

Gustavo Silva, voluntário de Relações Públicas e Imprensa na TODXS, nos conta que acredita em “um futuro com mais diversidade, igualdade e menos violência. Na Todxs acreditamos que ele virá por meio da transformação social, um exemplo simples do que precisa mudar é uma pesquisa que saiu do IBGE, a qual foi feita com a comunidade LGBT, onde pessoas trans, travestis e demais não estavam incluídas nessa pesquisa. São dados ainda subnotificados, a importância de coletarmos esses dados é para entender padrões, comportamentos e necessidades para que consigamos criar políticas mais assertivas, programas sociais de inclusão e acesso mais bem direcionados”. Gustavo acrescenta que o IBGE divulgou recentemente que não vai incluir perguntas sobre orientação sexual e identidade de gênero no próximo censo, configurando mais 10 anos até conseguirmos coletar e criar estratégias para a comunidade.

A ONG possui vários projetos de atuação e possuem duas frentes, onde empoderam a comunidade através de capacitações e articulação de recursos e potencializam novas lideranças e organizações para atuar na inclusão da comunidade. Foto: Reprodução do site https://www.todxs.org/

Sobre a luta por equidade Gustavo nos conta que a luta é diária e parte muito da educação e de gerar consciência, hoje muitas vezes não temos mais paciência para explicar, mas podemos indicar literatura e trabalhos, afinal está tudo disponível, mas as pessoas querem ser guiadas, querem ser aprendizes. Partimos dessa necessidade de ter autoconhecimento de forma autônoma. A violência também é um ponto que deve ser falado, notificado e discutido, afinal além da violência física a maioria da comunidade passa por violência simbólica e psicológica, isso acontece de forma estrutural na sociedade, desde a infância.

“Preconceito é algo estrutural na sociedade e ele existe também dentro da comunidade, precisamos estar em ambientes de máxima diversidade para desconstruir”, afirma Gustavo. Foto: acervo pessoal

 

Consciência sobre as IST’S

Por muito tempo houve o discurso de que as Infecções Sexualmente Transmissíveis eram distribuídas somente por pessoas LGBTQIAP+, criando uma estigma e um preconceito, fazendo com que as pessoas cis e heterossexuais reproduzissem isso e acreditem fielmente que nunca irão ser afetados por esses doenças. Porém, a informação é a principal chave de mudança desses estigmas e essa conversa deve começar desde a escola. Gustavo nos conta que ainda é um desafio falar sobre isso, “é importante gerar conhecimento também por essa frente, a minha geração cresceu com essas informações, porém acabou se perdendo, vejo que as gerações mais novas não estão conscientes, vejo que as pessoas acham que isso não existe mais, mas existe e tem crescido muito. Nick Nagari ainda acrescenta que é necessário “a garantia de um direito a saúde sexual e reprodutiva das pessoas da comunidade, sem que o olhar preconceituoso atrapalhe, para que possamos ter um atendimento digno e, de fato, nos proteger, para que sejam criadas políticas públicas que falem da nossa saúde sem esse olhar discriminatório.

 

Corpos que lutam a anos pela comunidade inspiram outros corpos

Carlos Magno, 50 anos e militante a 22 nos inspira a permanecer na luta: “o enfrentamento se dá essencialmente com ação coletiva, acredito que juntos somos mais fortes, eu milito a mais de 22 anos, fui um dos fundadores do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de MG, fui organizador da parada por vários anos e fui presidente da Associação Brasileira LGBTQIA+, hoje sou secretário de formação política. Entendo que essa luta só receberá condições de enfrentamento quando estivermos organizados coletivamente, seja em coletivos, ONGs e setoriais de partidos. O combate deve se dar diariamente em vários espaços da sociedade”.

O militante acredita tanto na mudança que a anos dedica parte de sua vida na luta pelos direitos da comunidade, “nesses anos de luta eu percebo alguns avanços políticos, eu sou da geração de armário e hoje vemos grandes figuras, personalidades e artistas se assumindo. Lutamos e conseguimos a lei do casamento, do nome social, lei da adoção, lei da criminalização, claro, ainda estamos longe do ideal, mas eu sou militante pois acredito numa sociedade melhor, onde não haja preconceito e a comunidade tenha cidadania efetiva”.

Carlos coloca seu corpo incansavelmente na luta pela comunidade há 22 anos. Foto: acervo pessoal

O preconceito dentro da própria comunidade também deve ser combatido, pois ele reflete a sociedade e vivemos uma sociedade patriarcal, racista, desigual, hierarquizada e isso vem para o seio do movimento. Nosso papel é combater isso nas organizações, fóruns do movimento e criar ações afirmativas, onde as travestis possam ter espaços de poder, onde os negros possam estar a frente do movimento, é uma luta constante INTERNA, pois o movimento não é uma ilha, ele reflete uma sociedade marcada por discriminações e preconceitos, afirma o entrevistado.

Perante a representatividade e a necessidade de crescer a bancada de pessoas LGBTQIA+ nos cargos de poder, o Centro-Oeste de Minas Gerais recebe, pela primeira vez, a pré-candidatura de uma mulher trans para Deputada Estadual.

Flávia Gontijo (Solidariedade), 40 anos, assistente social, é natural de Abaeté, em Minas Gerais, e colocou seu corpo de mulher trans na luta pelos direitos LGBTQIA+ anunciando sua pré-candidatura à Deputada Estadual como forma de reagir a tanto ódio que a comunidade sofre diariamente. Flávia foi candidata a vereadora em Abaeté e se politiza desde 2016, quando entrou no curso de Serviço Social da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) e conta: “embora ainda exista um movimento de forças opressoras e conservadoras para demonizar nossa existência, desqualificar nossa atuação e usurpar nossas pautas, continuamos na certeza de que temos plenas condições de contribuir com a sociedade atual tão plural e diversa!”

“Sobre nós, nada sem nós. Não queremos embaixadores ou promotores da nossa pauta”, afirma Flávia sobre sua luta para ocupar um espaço em uma política majoritariamente masculina. Foto: perfil do instagram da entrevistada @flavia.umanovaideia

Como estamos sendo representades na mídia?

                         Apesar de termos tido alguns avanços quanto a representação da comunidade LGBTQIA+ na mídia e nos espaços comunicacionais, ainda há muito o que melhorar. Carlos nos conta que “a imprensa melhorou muito nos últimos anos, algumas questões ainda são necessárias para os jornalistas como a linguagem, gênero e pronome. O grande problema que ainda existe é nos programas policiais, onde há grande preconceito ao abordarem a questão LGBTQIA+, usando termos preconceituosos, discriminatórios e estigmatizados, principalmente quando reportam os crimes contra a comunidade. Nick Nagari ainda vai além, ele revela que falta iniciativa por parte dos jornalistas de se educarem, entenderem e respeitarem como a comunidade deve ser representada, “existe uma falta de procura mesmo, estamos falando de jornalistas e portais grandes que tem total condição de buscar esse acesso, mas não fazem e não dão a devida importância”. O entrevistado ainda conta que recentemente um grande portal fez uma matéria falando de um vídeo seu, o qual o trataram a todo momento pelo pronome feminino: “não pesquisaram e nem abriram a bio do meu instagram para ver que sou uma pessoa trans não binário e uso pronomes masculinos, essa falta de atenção só acontece porque não dão a importância que deviam dar por respeito a nossa comunidade”.

No fim de todos os dias sendo um corpo LGBTQIAP+, o que fica é o sentimento de esperança de uma sociedade que exercita a escuta, discute e respeita a existência do outro, onde aprender, estudar e se conscientizar são premissas para se colocar no lugar do próximo.

Ah… E o que dizer do mês de Junho? Um mês que também celebra a existência de milhões de pessoas que se orgulham de ser quem são, afinal, Johnny Hooker canta a todos os cantos e ventos: “ninguém vai poder, querer nos dizer como amar!”

 

* estagiária sob supervisão de Alessandra Mello

29/06/2022

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