Fortalecido em 2020, jornalismo precisará reforçar mecanismos que lhe possibilitam zelar pelo bem público em 2021

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Há razoável consenso no entendimento de que o jornalismo se fortaleceu durante as crises sanitária e política impostas aos brasileiros em 2020, mas e em 2021, como será? Projeto do Farol Jornalismo e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) realizado pelo quinto ano consecutivo, tenta responder a esta pergunta. “Em 2021, o coronavírus permanecerá circulando, os governos seguirão omissos e os ataques não cessarão. Para conquistar mais relevância e responder às hostilidades, o jornalismo precisará (…) reforçar os mecanismos que o permitem zelar pelo bem público, especialmente a capacidade de investigação. Por outro, e mais importante, precisará esforçar-se para abraçar, cada vez mais, a pluralidade de um país continental e desigual.” Veja nesta matéria assinada por Moreno Osório.

 

Apostar na pluralidade será fundamental para o jornalismo estreitar sua relação com a sociedade

Moreno Osório

As crises sanitária e política impostas aos brasileiros em 2020 fortaleceram o jornalismo. A condução errática e irresponsável dos esforços de combate ao coronavírus pelos agentes públicos contribuiu para a imprensa afirmar-se como ator decisivo em defesa da vida das pessoas. Quando ficou claro que a circulação de informações confiáveis poderia ser questão de vida ou morte, foi o jornalismo quem garantiu acesso a dados que governos não souberam gerenciar ou não quiseram publicizar. A consciência da relação entre saúde da população e direito à informação deu concretude à ideia de defesa da democracia, reafirmando a importância do jornalismo, mesmo sob ataques do executivo federal e de parcelas da sociedade.

Em 2021, o coronavírus permanecerá circulando, os governos seguirão omissos e os ataques não cessarão. Para conquistar mais relevância e responder às hostilidades, o jornalismo precisará ampliar o entendimento e a relação com a sociedade à qual serve. Por um lado, deverá reforçar os mecanismos que o permitem zelar pelo bem público, especialmente a capacidade de investigação. Por outro, e mais importante, precisará esforçar-se para abraçar, cada vez mais, a pluralidade de um país continental e desigual. O que significará, algumas vezes, ampliar suas próprias fronteiras de maneira a se colocar lado a lado com outros atores que defendem os valores democráticos.

Ampliar suas fronteiras significará estar atento ao que acontece nas bordas do jornalismo tal como o conhecemos historicamente. Por isso, em 2021, veremos o fortalecimento de um jornalismo mais combativo, plural e antirracista. Veremos ganhar protagonismo um jornalismo produzido não necessariamente por jornalistas profissionais, mas por comunicadores periféricos que usam a ética e a linguagem jornalística para informar e para se relacionar com o seu público. Observaremos um jornalismo mais atento aos discursos das redes sociais, que, a despeito da toxidade, vêm se mostrando um ambiente frutífero para o surgimento de narrativas capazes de moldar o discurso público.

O desafio é enorme.

Até porque dificuldades identificadas em edições anteriores deste projeto se mantêm. A crise do modelo de negócio e a corrida por novas formas de sustentabilidade ainda são realidade. Bem como a desinformação, que segue recebendo grande parte dos esforços jornalísticos no mundo inteiro. Em anos recentes, ambas passaram pela relação do jornalismo com as grandes plataformas. Em 2021 não será diferente. Agora, com um agravante, já que o ecossistema independente — protagonista da expansão de fronteiras necessária para manter a relevância do jornalismo — é o mais frágil economicamente e, portanto, o mais dependente do dinheiro das gigantes da tecnologia.

A essas dificuldades a pandemia impôs outras duas situações com as quais o jornalismo precisará lidar em 2021: a precarização do trabalho e a qualidade da saúde mental de seus profissionais. Nenhuma das duas é novidade, mas o home office e a natureza da cobertura da pandemia as agravaram de forma brutal. Os jornalistas encerram 2020 quebrados — mental e financeiramente. Refletir e agir sobre essa realidade será decisivo para que o jornalismo se mostre relevante e digno de credibilidade em 2021. Mas não será fácil. As duas frentes mexem com formas de organização do trabalho e com a maneira pela qual jornalistas veem a si próprios, ambas arraigadas no imaginário da profissão.

Pela quinta vez, o Farol Jornalismo e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) convidam jornalistas e pesquisadores a refletir sobre o que espera o jornalismo no ano que se aproxima. Se o contínuo é a medida do descontínuo, pode-se dizer que 2020 foi um ano extraordinário. E rupturas suscitam busca pela explicação: no mundo inteiro, as pessoas precisaram reatribuir sentido ao cotidiano quando a pandemia virou suas vidas de cabeça para baixo. E no Brasil de gestores hesitantes, muitas vezes coube à imprensa organizar informações capazes de oferecer alguma certeza em meio ao caos. Isso abriu possibilidades ao jornalismo. Identificar como aproveitá-las é o desafio dos 9 autores convidados para esta edição do especial O jornalismo no Brasil.

Para Luiza Caires, Editora de Ciências do Jornal da USP, o jornalismo científico brasileiro em 2021 será mais investigativo, e precisará mobilizar práticas de outras especialidades. “Um bom jornalista de ciências não deve apenas ser capaz de transformar informações complexas da biologia, ciências exatas e humanas em notícias compreensíveis, e que façam sentido na vida do público. Precisa também entender como essas notícias conversam com o ambiente político e social da atualidade, escreveu. Além disso, Caires chama a atenção para a necessidade de fugir da “enganosa neutralidade do ouvir vários lados”. “Não vejo”, segue ela, “incompatibilidade com a profissão ou demérito no fato de o jornalismo científico se assumir aliado aos valores da boa ciência”.

Ao assumir um lado, ainda que seja o lado da defesa da ciência e dos direitos humanos, o jornalismo acaba por tensionar ideias que ainda pairam sobre a definição do que ele é (ou do que deveria ser). Em parte, as hostilidades sofridas pela profissão podem ser explicadas por apropriações às vezes simplistas, às vezes desonestas, de valores como neutralidade e imparcialidade. Assim, a escalada de ataques deve continuar no próximo ano, deteriorando ainda mais o ambiente democrático, projeta Débora Prado, da ONG Artigo 19. Como resposta, escreve, o jornalismo precisará estar atento a “circulação de informações diversas, produzidas com responsabilidade e a partir das diferentes realidades vividas no país são um caminho sólido para enfrentar um cenário adverso.”

Esta atenção passará, em 2021, pelo que vem moldando o jornalismo de fora para dentro.

Pedro Borges, do Alma Preta, sublinha a importância do jornalismo local e periférico e negro na contínua construção da credibilidade do jornalismo junto ao seu público. “A relação de confiança entre comunicadores e territórios é construída principalmente a partir do contato cotidiano e direto”, escreve ele, salientando que este vínculo se fortaleceu ainda mais em 2020. “Em 2021, a experiência positiva de coletivos de comunicadores negros e das periferias durante a pandemia pode inspirar o surgimento de outros grupos de jornalistas (ou não) nestes territórios”. Para Borges, este movimento será fundamental para o jornalismo, “informando com qualidade os desertos de notícia e, consequentemente, ajudando a desenvolver um país diferente, menos desigual e menos violento”.

Já a professora e pesquisadora Cleidiana Ramos destaca os discursos antirracistas que emergem das redes sociais e que se mostram capazes de moldar o jornalismo. “Parte de uma luta que atravessa a história do país, o antirracismo e a valorização da cultura afrobrasileira encontrará no ambiente digital ainda mais combustível para a luta pela diversidade e representatividade no jornalismo e, consequentemente, nos diversos meios sociais”, escreve Ramos. Citando acontecimentos como a pressão que desencadeou uma mudança no programa Em Pauta, da Globonews, ela acredita que em 2021 essa dinâmica deve se intensificar, “beneficiando-se da intersecção crescente entre o campo jornalístico e outras formas de comunicação nativas do ambiente digital. Em especial, merecerá atenção sua potencialidade para pautar mídias tradicionais.”

Por fim, Caê Vasconcelos, da Ponte Jornalismo, amplia a discussão ao clamar por um jornalismo para todas as pessoas LGBTs. Segundo ele, é preciso “entender que vivemos em uma sociedade construída em cima do sexismo, da LGBTfobia e do racismo”. E para que em 2021 o jornalismo possa ser de fato inclusivo, precisará olhar para fora da “bolha cishétero branca burguesa” em que vive. “O jornalismo em 2021 precisa entender que a diversidade só pode ser feita com mulheres e homens trans, travestis, pessoas não-binárias, intersexo e agêneras. O jornalismo em 2021 precisa entender que a diversidade só pode ser feita com pessoas negras e periféricas”, escreve.

Como dar visibilidade a esses jornalismos? Como mantê-los sustentáveis financeiramente?

Para refletir sobre essas questões será preciso encarar a relação do jornalismo com as grandes plataformas. Se nos últimos anos a discussão a respeito dessa dinâmica se concentrou na distribuição de conteúdo e na desinformação, recentemente ela ganhou um novo capítulo: o investimento que as Big Techs têm feito no jornalismo no mundo inteiro. Para Guilherme Felitti, da Novelo Data, “a concentração de poder e dinheiro na mão de poucas empresas de tecnologia atingiu diretamente o jornalismo não apenas por desmontar o modelo de negócio […], mas também por introduzir incontáveis armadilhas travestidas de boias de salvação”. Não há uma saída fácil. Caberá ao jornalismo encontrar um equilíbrio capaz de manter a independência necessária para sua afirmação.

Também será necessário equilíbrio para atuar na encruzilhada entre a transparência e a proteção de dados. Essa é a aposta de Fernanda Campagnucci, diretora-executiva da Open Knowledge no Brasil, ao refletir sobre como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) vai afetar o trabalho jornalístico em 2021. “Com os esforços de cobertura da pandemia de Covid-19, o ano de 2020 ensinou que o jornalismo pode ser a força-motriz para reverter retrocessos de transparência e alavancar a abertura de dados”, escreve, acrescentando que o “processo de abertura sem precedentes na área de saúde” deve “se estender a outros setores de política pública”. Para ela, 2021, com os novos mandatos iniciando nas prefeituras municipais, será o momento propício para ampliar essa cobrança.

Os desafio das Big Techs e da transparência não são os únicos.

A pandemia mudou a forma como o jornalismo foi produzido ao longo de 2020. O isolamento ceifou um dos principais ativos da prática profissional: a observação in loco. Mas para além das dificuldades impostas à produção narrativa, o longo período de quarentena esvaziou redações e os jornalistas foram trabalhar em casa. O home office escancarou o conhecido processo de precarização da profissão, observa a presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga. “Para que se mantenha e se intensifique a revalorização do jornalismo pelo público, ocorrida durante a pandemia, e para garantir a qualidade do jornalismo em 2021, é preciso valorizar o profissional jornalista”, escreve. O problema, diz ela, é que não há elementos que indiquem essa revalorização.

A precarização não compromete apenas a qualidade do jornalismo. O trabalhador também é afetado. Não apenas financeiramente, mas também mentalmente. Em 2020, a pandemia tirou o véu dessa inferência óbvia ao impor aos jornalistas uma cobertura extenuante. “Há uma certa insalubridade em relatar e estar em contato direto com aquilo que de mais aflitivo acontece no mundo”, disse Marco Túlio Pires, do Google News Lab, a Guilherme Valadares, diretor de pesquisa no Instituto de Pesquisa & Desenvolvimento em Florescimento Humano e fundador do site Papo de Homem. Para Valadares, será preciso colocar a saúde mental dos jornalistas no centro da pauta. Até porque “jornalistas exaustos, deprimidos, ansiosos, sobrecarregados e insones narram um mundo atravessado por essa paisagem emocional”.

Já está ficando claro que, a exemplo do ano que se encerra em poucos dias, 2021 será difícil. Ao jornalismo, mais do que narrar os acontecimentos que se avizinham, caberá ajudar a construir uma realidade melhor. Para isso, precisará seguir defendendo de forma firme os valores éticos e deontológicos que constituem o seu exercício profissional. Mas também será preciso ser mais plural e estar aberto a novas vozes, novas práticas, novos corpos. Só assim o jornalismo se mostrará capaz de continuar atuando de forma cada vez mais decisiva na defesa da democracia e da saúde da população no ano que se aproxima.

 

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2021.

Moreno Osório é jornalista, doutor em Comunicação, professor na PUCRS, cofundador do Farol Jornalismo e editor do projeto Jornalismo no Brasil.

(Publicado pelo Jornalismo no Brasil 2021.)

[15/12/20]

 

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