Corrupção, direitos humanos e liberdade de imprensa: a nota da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão na íntegra

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A revelação pela imprensa de diálogos mantidos entre agentes públicos do sistema de Justiça no contexto da Operação Lava Jato reforça a necessidade de compreensão das diversas dimensões dos direitos humanos e de promoção conjunta do enfrentamento à corrupção, do devido processo legal, do direito à informação e da liberdade de imprensa.

A prevenção e o combate intransigente à corrupção são legítimos quando se articulam com o respeito ao direito dos investigados e acusados de responderem a um processo justo, bem como com a liberdade de manifestação jornalística e de garantia do direito coletivo de receber e buscar informação. Para analisar o quadro normativo que incide sobre esse cenário, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal responsável pela defesa de direitos humanos, emite a presente nota.

A CORRUPÇÃO AGRIDE OS DIREITOS HUMANOS

A corrupção é um grave obstáculo para a afirmação do Estado Democrático de Direito. Ela reduz a capacidade dos governos de prover serviços fundamentais, amplia desigualdades e injustiças e compromete a legitimidade de instituições e processos democráticos. Como refere o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, tanto países ricos como pobres sofrem com a corrupção e seus efeitos, nas esferas públicas e privadas, independentemente de seus sistemas políticos ou econômicos e do grau de desenvolvimento.

Porém, são sempre as populações mais desfavorecidas e menos representadas nos espaços democráticos que suportam o maior ônus. Em sociedades extremamente desiguais, como a brasileira, a corrupção contamina na raiz o cumprimento do objetivo fundamental, fixado na Constituição, de construir um país livre, justo e solidário (CR, artigo 3º, I).

As instituições nacionais e internacionais de direitos humanos têm compromisso com o enfrentamento e a prevenção da corrupção. É, aliás, no marco da Organização das Nações Unidas (ONU) que se aprovou a Convenção Contra a Corrupção, pela sua Assembleia Geral em 2003 e ratificada por mais de 180 países, inclusive o Brasil. O preâmbulo da Convenção reconhece a importância do enfrentamento à corrupção como um meio adequado para proteger a democracia, o Estado de Direito, o desenvolvimento sustentável e, em decorrência, os direitos humanos, como destacou o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Desse modo, é dever do Ministério Público, do Poder Judiciário e dos demais órgãos do sistema de justiça promover o enfrentamento à corrupção como estratégia essencial para o reforço democrático e a afirmação dos direitos humanos.

O enfrentamento à corrupção, como a qualquer outra violação aos direitos humanos, deve respeitar integralmente todos os direitos fundamentais ou humanos fixados na Constituição e no direito internacional. Do contrário, suprimir-se-ia a legitimidade do próprio esforço de combatê-la. É inadmissível que o Estado, para reprimir um crime, por mais grave que seja, se transforme, ele mesmo, em um agente violador de direitos fundamentais.

A investigação, acusação e punição de crimes em situação alguma podem se confundir com uma cruzada moral ou se transformar num instrumento de perseguição de qualquer natureza.

Por esse motivo, a Constituição brasileira (dentre outros dispositivos, o artigo 5º, incisos XXXVII , LIII , LIV e LV ) e o direito internacional (por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 8.1; o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, artigo 21.3 e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 14) exigem que a persecução penal se desenvolva com estrita observância ao devido processo legal e ao amplo direito de defesa.

Um dos elementos essenciais do devido processo legal reside no direito a um julgamento perante juízes competentes, independentes e imparciais, no qual o réu e seus advogados são tratados com igualdade de armas em relação ao acusador. Portanto, é vedado ao magistrado participar da definição de estratégias da acusação, aconselhar o acusador ou interferir para dificultar ou criar animosidade com a defesa.

Em igual sentido se orientam o direito internacional dos direitos humanos e o direito penal internacional, os quais determinam que, em qualquer sistema jurídico-penal, seja acusatório ou inquisitorial, os acusados têm direito a um julgamento justo. No caso brasileiro, tomando em consideração que a Constituição de 1988 adotou o sistema acusatório como estrutural do sistema penal, um julgamento justo somente ocorrerá quando estritamente observada a separação do papel do Estado-acusador (Ministério Público) em relação ao Estado-julgador (juiz ou tribunal).

Portanto, o réu tem direito a ser processado e julgado por juízes neutros e equidistantes das partes. O processo no qual juízes, mesmo sem dolo, ajam, direta ou indiretamente, na promoção do interesse de uma das partes em detrimento da outra estará comprometido.

É evidente que a dinâmica de processos complexos muitas vezes culmina em conversas, fora dos autos, entre o juiz, os advogados das partes e os membros do Ministério Público. Embora seja aconselhável que esses diálogos ocorram com a presença da parte adversa, não se pode rotular de ilícita essa espécie de contato. A prática está arraigada no Judiciário brasileiro e, inclusive, foi definida como um direito da parte no Estatuto dos Advogados. Seu propósito é permitir que os representantes das partes possam expor suas teses aos magistrados. O magistrado deve escutar o advogado ou membro do Ministério Público, podendo fazer indagações.

Não lhe é permitido, porém, emitir juízos prévios sobre a situação concreta e, muito menos, aconselhar as partes, recomendar-lhes iniciativas ou transmitir-lhes informações privilegiadas. Não bastasse a Constituição e os tratados internacionais, o Código de Processo Penal e o Código de Processo Civil definem essas condutas como suspeitas, dando ensejo ao afastamento do juiz do caso e à nulidade dos atos por ele praticados.

Essas regras do devido processo legal e do julgamento justo são de observância obrigatória. Não se pode cogitar que o combate à corrupção, ou a qualquer outro crime grave, justifique a tolerância com a quebra desses princípios, a um só tempo de ordem constitucional e internacional. Os custos de uma argumentação em favor de resultados, apesar dos meios utilizados, são demasiado altos para o Estado Democrático de Direito.

REVELAÇÃO DE INFORMAÇÕES PRIVADAS PELA IMPRENSA. POSSIBILIDADES E LIMITES. IMPOSSIBILIDADE DE CONTROLE PRÉVIO PELO PODER PÚBLICO OU DE ADOÇÃO DE MEDIDAS DE REPRESÁLIA

A liberdade de expressão e o direito de acessar, buscar e receber informação são alicerces da democracia, dada a sua importância para a concretização da liberdade de opinião e de manifestação do pensamento, a transparência pública e a organização social. Esses direitos se fortalecem com a liberdade de informação jornalística ou liberdade de imprensa, ferramenta indispensável para a projeção coletiva e difusa da informação e da manifestação.

Na Constituição brasileira, diversos incisos do artigo 5º realçam a fundamentabilidade desses direitos sob distintos aspectos, tais como os IV, IX, XIV e XXXIII, assim como o artigo 220. No direito internacional, merecem destaque os artigos 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o artigo 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

O Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a Constituição brasileira na matéria, decidiu que a liberdade de imprensa não pode ser constrangida por censura em nenhuma hipótese e, apenas por via reparatória, posteriormente à publicação, a responsabilidade do meio de imprensa poderá ser sancionada (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130). Assim, não é possível censura prévia a qualquer publicação jornalística, ainda que ela incorra em ilegalidades ou abusos, inclusive no que diz respeito ao direito de privacidade.

Convém, nesse último ponto, recordar que o espaço de privacidade de agentes públicos é sempre mais reduzido do que de cidadãos em geral, em razão do exercício da função pública. De modo que a publicidade de seus atos é, em geral, a regra.

Documento firmado conjuntamente pelo relator especial das Nações Unidas sobre a Liberdade de Opinião e Expressão, o representante da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa para a Liberdade dos Meios de Comunicação, e o relator especial da OEA para a Liberdade de Expressão, em 2004, reafirmando declarações conjuntas anteriores, consigna que: “as autoridades públicas e funcionários públicos têm a responsabilidade exclusiva de proteger a confidencialidade da informação sigilosa legitimamente sob seu controle. Outros indivíduos, incluindo os jornalistas e representantes da sociedade civil, nunca devem estar sujeitos a punições pela publicação ou ulterior divulgação dessas informações, independentemente de elas terem sido filtradas ou não, a não ser que tenham cometido fraude ou outro delito para obter as informações”. A ilegalidade na obtenção das mensagens também não obstrui o direito de publicação. Eventual responsabilidade pela invasão indevida de privacidade deve ser investigada de modo autônomo e, se comprovada, sancionada, sem, contudo, interferir na liberdade de publicação dos conteúdos.

Finalmente, deve ser registrado que a vedação constitucional à censura (CF, artigos 5º, IX, e 220, § 2º) e o regime de proteção à liberdade de informação tornam ilícita qualquer tentativa de represália aos meios de comunicação que participam das publicações. Iniciativas desse tipo podem, inclusive, ser consideradas crime de responsabilidade e improbidade administrativa. O Estado deve informar se pende alguma investigação em face de jornalistas ou meios de comunicação que estejam envolvidos com a publicação de informações jornalísticas de potencial desagrado de autoridades, para garantia da transparência e da liberdade de imprensa.

Brasília, 12 de julho de 2019

Deborah Duprat – Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão

Domingos Sávio Dresch da Silveira – Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Substituto

Marlon Weichert – Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Adjunto

Eugênia Augusta Gonzaga – Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Adjunta

(Publicado por Reinaldo Azevedo.)

 

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[24/7/19]

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