O jornalista e escritor Lucas Figueiredo lança na noite da próxima quarta-feira 7/10 em Belo Horizonte seu novo livro, “Lugar Nenhum – militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura”. O livro confirma, com documentos inéditos, o pacto de silêncio feito pelos governos civis, a partir de 1985, com os militares, para impedir que sejam divulgadas informações reveladoras sobre a ditadura, inclusive o esclarecimento do destino de opositores considerados desaparecidos.
O livro mostra que, ao contrário do que têm afirmado os governos civis ao longo das últimas três décadas, grande parte dos documentos da ditadura foi preservada, mas os militares negam acesso a eles. “Isso é muito grave”, observa Lucas. “Passados exatos 30 anos do fim da ditadura, o poder militar ainda não se subordina totalmente ao poder civil. Isso, em última análise, é um entrave para a conclusão da transição democrática. Saímos da ditadura em 1985 e agora, em 2015, ainda não alcançamos a democracia plena. Estamos em algum lugar (ou em lugar nenhum, como batizei o meu livro).”
O lançamento acontecerá no Memorial Minas Gerais Vale, na Praça da Liberdade. Às 18h30, haverá um debate sobre o livro mediado pelo jornalista João Paulo Cunha, diretor do BDMG Cultural, e em seguida sessão de autógrafos. O livro inaugura a coleção da Editora Companhia das Letras sobre arquivos da repressão, coordenada pela historiadora Heloisa Starling. Novos livros da coleção tratarão da repressão aos indígenas durante a ditadura, dos braços da ditadura no exterior e do apoio dos empresários aos governos militares.
Comissão da Verdade
Ex-repórter da Folha de S.Paulo e autor de diversos livros de jornalismo investigativo, Lucas Figueiredo mora atualmente na Suiça. Em 2012, coordenou um grupo de jornalistas que trabalhou para a Comissão Nacional da Verdade (CNV). As informações apuradas sobre a ocultação dos arquivos da ditadura, no entanto, não foram usadas no relatório final da Comissão. Isso motivou a publicação do livro.
Segundo o jornalista, parte dos arquivos da ditadura foi destruída, mas vasto material continua intacto, porém ocultado. Só o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) já possuía mais de 1 milhão de páginas microfilmadas, em 1973. Em 1993, os arquivos ainda estariam preservados e até pelo menos 2013, a Marinha continuava mantendo e atualizando seu arquivo sobre mortos e desaparecidos políticos.
A política de ocultação dos arquivos da ditadura pelos governos civis teria começado na presidência José Sarney e continuado com os presidentes Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. O governo FHC reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte de opositores considerados desaparecidos, mas baixou um decreto prolongando o prazo de proteção dos arquivos e criando o “sigilo eterno” dos “documentos ultrassecretos”. A presidenta Dilma revogou este decreto em 2012, mas não atendeu solicitação de familiares de desaparecidos que pediam acesso aos arquivos. Prevaleceu a versão de que eles teriam sido destruídos.
Lucas Figueiredo ressalta que os arquivos da ditadura são provas de crimes contra os direitos humanos. Para sua destruição, teria de ter acontecido uma grande operação de eliminação de provas de crimes; se os arquivos ainda existem, como ele acredita, está acontecendo ocultação de provas. “A cumplicidade de militares e civis na ocultação dos arquivos secretos da ditadura é um entrave para a conclusão do processo de redemocratização”, observa.
Leia a seguir a entrevista que o repórter concedeu ao Sindicato por e-mail.
P- Você acredita que os arquivos da ditadura continuam intactos?
R- No meu livro, eu mostro, por meio de documentos oficiais, que parte dos arquivos foi sim destruída como afirmam as Forças Armadas. Mas também provo que uma grande parte foi preservada e continua ainda hoje em poder dos militares, na forma de microfilmes.
A Justiça Federal já mandou abrir esses arquivos, mas as Forças Armadas se recusam a fazê-lo. Isso é muito grave, já que mostra que, passados exatos 30 anos do fim da ditadura, o poder militar ainda não se subordina totalmente ao poder civil. Isso, em última análise, é um entrave para a conclusão da transição democrática. Saímos da ditadura em 1985 e agora, em 2015, ainda não alcançamos a democracia plena. Estamos em algum lugar (ou em lugar nenhum, como batizei o meu livro).
P- A Comissão da Verdade não usou o material levantado pela equipe que você coordenou. Por que isso aconteceu?
R- Fui chamado para atuar como pesquisador da CNV em 2012. A pedido da comissão, montei e coordenei uma equipe de jornalistas investigativos que tinha duas missões: localizar arquivos secretos da ditadura e entrevistar antigos agentes e comandantes de órgãos da repressão e de inteligência. Esse grupo, que foi apelidado de equipe ninja, tinha o apoio do Projeto República, do Departamento de História da UFMG, e era supervisionado pela historiadora Heloisa Starling, também da UFMG. Conseguimos levantar muita informação, que foi processada depois pelo Projeto República. Entre os documentos que obtivemos, estão provas de que as FFAA ocultam arquivos. Porém, a CVN ignorou todas as informações em seu relatório final. Por quê? Não sei. Só os comissários da CNV pode responder essa questão.
P- O livro contém documentos inéditos que confirmam a preservação dos arquivos? Quais e o que dizem?
R- O livro tem documentos confidenciais que mostram que, até pelo menos 2013, a Marinha continuava mantendo e atualizando seu arquivo sobre mortos e desaparecidos políticos. Um arquivo que até hoje a sociedade desconhece. O livro também traz documentos que comprovam o corpo mole de todos os presidentes da República do pós-ditadura (Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma) com o tema da abertura dos arquivos da ditadura. Há um documento confidencial do governo Lula que mostra como o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, fez prevalecer dentro do governo a posição de que os militares tinham destruído integralmente os antigos arquivos da ditadura em operações de rotina, dentro da lei (o que não aconteceu). Também comprovo que a presidente Dilma tomou conhecimento de que a Marinha ocultou da CNV informações sobre mortos e desaparecidos políticos. Dilma soube de fato e nada fez.
P- Por que acontece a ocultação dos arquivos por governos tão diferentes durante 30 anos?
R- Esse pacto foi delineado por Tancredo Neves, no fim da ditadura. Depois de eleito presidente, em 1985, na primeira entrevista que concedeu à imprensa, ele falou que não interessava ao país investigar os fatos (na verdade, crimes) ocorridos na ditadura. Tancredo, claro, pretendia fazer vistas grossas para os crimes dos militares em troca da estabilidade nos quartéis. Esse pacto foi mantido por Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma. Até hoje, não tivemos um presidente civil (é sempre bom lembrar, o presidente acumula o posto de comandante-em-chefe das Forças Armadas) que peitou as Forças Armadas e mandou abrir os arquivos. Preferem fingir acreditar que os arquivos foram de fato totalmente destruídos. Claro, obrigar os militares a abrir os arquivos seria comprar uma grande briga com as Forças Armadas, mas alguém precisava fazê-lo. Até hoje, esse “alguém” não chegou ao Planalto.