Quando Fernando Collor era presidente da República, minha ex-namorada Lúcia Helena aceitou um convite para desenvolver o projeto gráfico de um jornal que o PC Farias estava montando em Alagoas para ameaçar o poder de imprensa do Pedro Collor. Investiram milhões de dólares no projeto e aquilo começou a ser investigado como parte do processo de impeachment do presidente. Peguei um avião e fui a Maceió com o intuito de convencer Lúcia Helena de que devia cair fora, porque a qualquer momento a Polícia Federal ia invadir a sede do jornal e prender quem estivesse lá dentro.
Mas fiquei curioso de conhecer o jornal Tribuna de Alagoas. Suas instalações eram o sonho de qualquer jornalista: a frota de carros de reportagem era zero km, o prédio novo, com projeto arquitetônico funcional criado por arquitetos em colaboração com editores. No terceiro andar, a Diretoria e o Comercial. No segundo, a Redação e a Fotografia. No primeiro, a pré-indústria (montagem e fotolito). No térreo, uma novíssima rotativa alemã e o enfardamento. Dali uma esteira levava os fardos de jornal diretamente à frota de caminhões.
O único problema era que o jornal não circulava. Todos trabalhavam diariamente, mas apenas três exemplares eram imprimidos: um para o presidente da República, outro para o PC Farias e outro para o presidente do jornal, o poeta Noaldo Dantas, figura emblemática das letras e da cultura nordestina. Alto, muito magro, óculos de grau forte, cabeleira grisalha rebelde, Noaldo era fundador de jornais e tinha composto um poema de amor a Alagoas tão famoso que era impresso nas contracapas dos cadernos distribuídos gratuitamente pelo governo para a rede escolar.
— Aqui sou como a rainha da Inglaterra — explicou-me Noaldo Dantas. — Não sei de nada, não decido nada, fico apenas sentado nesse trono de presidente.
O problema ali era que, depois de meses trabalhando sem imprimir e distribuir o jornal, os repórteres já iam ficando sem fontes. Ninguém queria dar entrevista para não vê-la publicada.
Noaldo dava de ombros e dizia que aquilo era uma experiência inédita em sua longa vida: um jornal que paga em dia, mas não circula. Ele adorava a companhia dos repórteres e tinha um misto de predileção e hospitalidade pelos profissionais que vieram de outros estados. Vivia convidando-nos para beber nos melhores bares da cidade e pagando a despesa, mas com uma condição: de que dirigíssemos o carro dele na volta, porque seu Ford Del Rey já estava todo amassado pelas barbeiragens que cometia. Fazia parte do trato estacionarmos em sua garagem na Pajuçara e pegar um táxi para voltar ao hotel na Jatiúca.
Noaldo Dantas era uma pessoa encantadora com suas tiradas inteligentes de crítico mordaz das oligarquias nordestinas, e nos contou uma história inesquecível: como tinha problema de alcoolismo, sua esposa não lhe permitia ter garrafa de bebida em casa. Quebrava todas que encontrava na pia. Então ele ficava às noites pegando a fresca na varanda de sua casa e vigiando a barraca de praia da Pajuçara para dar uma escapulida. Então pegava uma garrafinha de Coca-Cola, esgueirava-se até lá e comprava três doses de scotch. Voltava e ficava mamando na rede até o calor abrandar, para entrar em casa e dormir com a esposa.
Em 1989, no intervalo entre o primeiro e o segundo turno da eleição que foi vencida por Collor, Maceió praticamente não tinha movimento às onze da noite. Lá foi ele magrelão em sua bermuda folgada e camisa desfraldada ao vento comprar a dose diária de manguaça. A barraca era suntuosa, de piso reluzente, balcão envernizado, e tinha até piano de cauda. Havia apenas um casal se beijando no fundo e outro freguês mais afastado no balcão. O barman de gravata-borboleta o cumprimentou e perguntou se queria o de sempre. Noaldo confirmou, entregou a garrafa e o homem foi enxaguá-la e pegar o funil para medir as doses.
Nisso, Noaldo ouviu o barulho de uma porta de carro batendo na rua e viu um Chevette branco, do qual saiu um rapaz troncudo de baixa estatura. Desinteressou-se dele e olhou para o barman, que já estava dando aquela “chorada” tradicional nas doses. De repente, ouviu um barulho ao lado e viu que o rapaz recém-chegado tinha batido a coronha de um revólver 38 no balcão, desafiando:
— Por acaso aqui tem algum feladaputa que não vota em Collor?
Sobressaltado, Noaldo viu que o rapaz olhava diretamente para ele, intimando.
— E o seô, vota em quem?
Noaldo era eleitor de Lula, mas não era doido de admitir. Tergiversou:
— É… Fernando Collor está na frente nas pesquisas, e deve ganhar, não é mesmo? Talvez com um pouco de dificuldade por causa dos metalúrgicos de São Paulo…
— Pois eu saí arretado hoje, com esse tresoitão e com uma doze lá no carro, a fim de matar algum feladaputa que não vota em Collor. Alagoano tem obrigação de votar em Collor, não tem?
Noaldo escorregou o dinheiro para pagar a bebida, e teve que responder:
— É verdade. Se o próprio povo do Estado não apoiar o candidato, fica mal pra ele, não é?
O rapaz não afastava os olhos de cachorro cruel.
— Tô conhecendo seu sotaque. Seô não é alagoano não, é?
— Não senhor, eu sou da Paraíba.
— Eu também sou paraibano… — disse o jagunço.
“Graças a Deus”, pensou Noaldo. “Estou salvo”. E começou a se despedir:
— Já que somos conterrâneos, peço a sua licença porque…
— E de que família é na Paraíba? — interrompeu o atirador.
— Meu nome é Noaldo Dantas.
O rapaz fechou a cara e levantou a voz:
— Por acaso é parente de João Dantas, aquele filho duma rapariga que assassinou João Pessoa?
Noaldo arregalou os olhos e tentou contemporizar:
— Aquilo foi na década de 30. Nem eu tinha nascido, muito menos o senhor, que é tão jovem.
Aproveitando que o rapaz ficou irresoluto, ruminando a informação, Noaldo passou a mão na sua garrafinha e foi saindo de fininho. O rapaz esbravejou:
— Ei, ei! Escute, paraibano: tá se escafedendo por quê? Por acaso tá se borrando de medo?
Noaldo parou, fechou os olhos, criou coragem e deu meia-volta. Quase encostou a cara na cara do arruaceiro e perguntou firme, com um olhar feroz:
— E tu já viu paraibano ter medo?
— Nunca vi não senhor — titubeou o rapaz.
— Pois então passe bem! — encerrou o velho poeta, virando-lhe as costas e tomando o rumo de casa. “Ai, vou tomar um tiro nas costas! Ai, vai ser agora… Ai tô morto!” Foi pensando assim, controlando o tremor das pernas, até deixar a garrafinha de uísque cair e se quebrar no asfalto. Passou umas duas semanas abstêmio sem ter coragem de voltar à barraca.
Essa história já tem 32 anos. Nem Noaldo Dantas, nem Pedro Collor, nem PC Farias existem mais. Não tem muito tempo voltei a Maceió, aluguei um carro para rever os lugares que conhecera. Notei que a orla estava eriçada de arranha-céus de luxo, transformando num forno as áreas planas imprensadas entre eles e o morro. A Praia do Francês estava inviável com centenas de guarda-sóis impedindo a passagem das pessoas e do sol. O belo prédio da Tribuna de Alagoas, o jornal que nunca circulou, já se tinha tornado praticamente uma ruína. O trono da rainha da Inglaterra deve ter sido vendido barato num Topa-Tudo.
[21/1/21]
É, Marcio, esse Brasil. é uma lenda. Agora os trezoitão são apontados contra quem votou na esquerda. Boa hora pra se lembrar da velhavarua de sempre na política nodsa
Nem vão precisar de tresoitão. Basta manter a necropolítica de não comprar vacina, nem oxigênio, que vão dizimar nossas fileiras. Temos que ficar velhacos!
Muito boa, Márcio! Mesmo já tendo lido lá no grupo, valeu à pena. ler outra vez. Texto e história deliciosos.
Adorei a história! Márcio, você escreve bem demais.
Olá Márcio Metzker, desejo votos de plenitude, saúde e alegria. Aquele abraço.