Infeliz eu vinha, por tempo mais demorado que o tolerável. Possíveis causas?
1) A pandemia;
2) A desgovernança (federal, estadual e municipal);
3) Pessoas esquisitas, cada vez mais arredias, amedrontadas e acabrunhadas;
4) Sentimentos imperscrutáveis, antigos e profundos, que só um psiquiatra escafandrista conseguiria pescar ou…
5) Uma poeirinha de chuva, enjoada e constante, que deixava os dias com cara de madrugada.
A baixa claridade nublava a noção do tempo: ia anoitecer ou amanhecer? Pouco importava. Estava na cama há três dias, aguardando a mudança do clima, dos acontecimentos e do humor, para voltar a operar no modo Alegria.
Quem sabe se eu alugasse um carro e saísse por aí, em busca de um lugar ensolarado, transbordante de Vitamina D? Podia recobrar pelo menos a esperança, aventei. Todos os meios de transporte, porém, haviam sido proibidos. Até meus pés, pelo visto, pois da última vez que saíra para caminhar fui dedurada por um vizinho na “live” diária do Prefeito. Trocou-se o patrulhamento ideológico pelo epidemiológico, ora vejam!
Ruminei revolta e desobediência civil, traçando estratégias de fuga de bicicleta por trilhas desabitadas, mas a lama abaixou minha crista e continuei debaixo dos lençóis, com as minhas fiéis gatinhas aos pés, prontas para um afago ou uma escorraça.
Na tarde do quarto dia (era sábado, talvez por isso) a névoa que se formara nos morros começou a subir. Sinal de estiagem. Um sol serelepe entrou pela sala/cozinha e fez brilhar as louças no escorredor, que secaram rapidinho. Abri um vinho, descongelei uma sopa e sentei na varanda que dá para o jardim, todo ele lavado e crescido, verde que só.
Acreditei, sinceramente, que era o fim dos dias turvos e pus a roupa suja na máquina de lavar. Já começava a cantarolar (sinal de que a alegria retornava) quando a bruma que escalava as montanhas parou nos picos, intimidada por gordas nuvens que marchavam no sentido oposto. Houve um rugir de tambores no telhado e a violência das pancadas fez tremer o varal. Rompeu, também, o fino fio de futuro que sustentara por instantes o quase contentamento. Voltei correndo para a cama. Com mais medo de renunciar à vida que morrer de covid.
Paraty, 22 de agosto de 2020.
[23/10/20]
Ah, Marcinha, que linda crônica a sua. E assim vamos levando a vida, não é?
Pois é. Mirtes. Déa que me convidou para escrever aqui. Uma herança dela, que guardo.