De volta ao maldito 1968, por Ivan Drummond

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Manhã de 14 de dezembro de 1968. Sempre que lembro dessa data, volto no tempo. Mais precisamente ao dia seguinte à publicação do AI-5 (Ato Inconstitucional número 5), que cassou direito dos políticos no país, uma das fortes marcas da ditadura militar.

Como disse, era 14 de dezembro de 1968. Não houve aula naquele dia. A ordem, não sair à rua. Mas meu pai, jornalista, não me deixou em casa. Tinha apenas 10 anos. Levou-me para trabalhar com ele. Era repórter da TV Itacolomi. Mas havia um alerta: manifestação de estudantes na Escola de Medicina. Assim, o carro da TV, uma Rural, foi nos buscar em casa.

O motorista, seu João. O cinegrafista, Gecido Freire. A Avenida Alfredo Balena, onde está a Faculdade de Medicina, fica relativamente perto de nossa casa, no São Lucas. E fomos nós. A Polícia – Militar e a extinta Guarda Civil – cercava o local.

Meu pai desceu para conversar com os policiais. Havia também alguns a paisana. Eram da Polícia Civil. Permitiram que ele trabalhasse. Gecido, câmera em punho, desceu do carro filmando tudo.

Meu pai conversava com personagens. Na época, não havia ainda o microfone acoplado à câmera. Ele usava caneta e papel para anotações. Eu, do lado. O pessoal estava revoltado contra o AI-5. De repente, uma explosão. Era uma bomba de gás lacrimogêneo.

Começou um corre-corre. Moços e moças, estudantes. Mais bombas atiradas pela polícia.

No meio da fumaça, perdi meu pai. Mas ele me encontrou. Levou-me à Rural e disse ao seu João: “Feche os vidros e tranque as portas. Não deixe o Ivan sair, de jeito nenhum…”

De dentro do carro, pelo vidro, o vi no meio da fumaça, de um lado para o outro. Estudantes machucados, pisoteados, caídos. E eles filmando, registrando tudo. O tempo foi passando.

Quando a fumaça dispersou, a polícia, de cassetete e fuzis em punho, empurrava os estudantes ao estacionamento da faculdade. Lá eles ficaram, como num campo de concentração, semelhante ao que ocorreu no Estádio Nacional, em Santiago do Chile.

Próximo ao meio-dia, ele e Gecido entraram no carro e disseram para o seu João: “Rápido, para a TV…”. Chegamos ao Edifício Acaiaca, na Afonso Pena, onde estavam instalados os estúdios da Itacolomi. Filme revelado, história no ar. A revolta mineira contra o AI-5.

Logo depois, ele pediu ao seu João para me levar de volta. Tinha de continuar trabalhando e eu iria atrapalhar. Em casa, minha mãe, que não foi trabalhar, pois tudo estava fechado, mostrava-se apavorada. Dei, então, o recado que meu pai mandara: “Não me espere chegar à noite. Não sei o que irá acontecer hoje”. Da TV, foi para o jornal – era também repórter de polícia do Diário da Tarde. “Não sei quando volto, mas não se preocupe.” Disse ainda que era melhor a gente ir, depois, para a casa do meu avô, pois lá estaríamos protegidos.

A partir de então, alimentei um sonho: ser jornalista, como meu pai. Passei no vestibular na PUC-MG, fiz Comunicação e pensava: “vou trabalhar com Felipe Drummond na TV Itacolomi e no Diário da Tarde”.

Pouco mais de um mês depois de as aulas começarem, em 29 de março, ele viria a morrer, nas minhas mãos. Fiz até boca-a-boca. Não adiantou.

A partir dali, vida nova para mim. E começou numa coincidência, pois no velório, entrei para o jornal. Fui contratado por Camilo Teixeira da Costa, o Camilão, ainda no cemitério. Comecei na segunda-feira seguinte, como diagramador. Depois, formado, virei repórter de polícia. Depois, de esportes.

Pois não é que, de alguma forma, quando menino, cheguei a trabalhar com meu pai?
[6/9/20]

 

9 COMMENTS

  1. Apenas 4 anos depois eu entrei para a TV Itacolomi como office Boy da redação e pude trabalhar com seu pai, que me ensinou tudo! Muitas lembranças desta época de escuridão, mas de muita luz interna das pessoas com as quais em pude conviver lá até o fechamento da emissora pelo governo federal. Parabéns pelo projeto e pela crônica meu amigo Ivan!

  2. Espetacular a crônica Ivan. Impressionante a sua descrição daquele fatídico dia e a sua emoção ao falar do seu pai. Emocionei-me. Abraços

  3. Linda crônica, Ivan.
    Você acabou seguindo o caminho a partir do ponto em que seu pai parou.
    Déa Januzi me ligou falando desse blog e me convidando para escrever nele também.
    Posso? Como faço para te mandar uma crônica?
    Um abraço, boa iniciativa.
    Parabéns.

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