A casa sem portas, por Carlos Herculano Lopes

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As mulheres têm razões das quais só elas são donas, e que a nós, os homens, não resta outra alternativa senão acatá-las, como convém à regra da boa convivência. Há alguns dias, quando cheguei em casa, levei o maior susto ao notar que todas as portas, inclusive as dos armários, haviam sido arrancadas. Só as que davam para a rua, permaneciam de pé. Perplexo, pensei: meu Deus, o que terá acontecido?

Mas como estava cansado, e minha mulher ainda iria demorar para chegar, resolvi relaxar e fui tomar uma ducha – em um banheiro sem portas, obviamente. E mesmo estando sozinho, achei a coisa mais esquisita do mundo – uma ausência total de privacidade – tomar um banho daqueles.

Porém isto ainda não era nada perto do que aconteceria no dia seguinte, quando outras coisas, inadiáveis e bem menos nobres do que tomar um banho nu, literalmente, precisaram ser feitas.

Mas esta é uma outra história, porque daí a algum tempo, com o sorriso de sempre,  minha mulher foi chegando e, antes mesmo de me cumprimentar, já foi dizendo, com a expressão mais feliz do mundo: ” Viu, meu amor?, mandei arrancar as portas para laquear…” E como o susto inicial já havia passado, e também o espírito já estava mais preparado, respondi que tudo bem, estava mesmo precisando, para a nossa casa ficar mais bonita. Só que pelo menos uma porta, a de um dos banheiros, ela devia ter deixado para mandar laquear depois, quando as outras já estivessem voltado.

” Pra quê, meu lindo, se nós moramos sozinhos?…” Ante a evidência, não tive outro argumento senão concordar. Porém as coisas não parariam por aí, pois no outro dia, antes das sete da manhã, quando eu havia acabado de me levantar, chegou à nossa casa um moço chamado Wanderley – o que a minha mulher e a decoradora haviam contratado para fazer o serviço. E, como se fosse um velho conhecido, e já senhor da situação, foi logo dizendo: “Mas que livraiada o senhor tem, hem seu Carlos?… Vamos ter de tirar tudo para pintar os armários…”

Nem é preciso dizer que o susto que tomei, ao ouvir aquilo, talvez tenha sido até maior do que o outro, quando cheguei em casa e vi que ela estava sem portas. Tirar todos aqueles livros, guardados ali há anos, seria mexer em velhas lembranças, ter de reler dedicatórias antigas, trazer de volta lugares, algumas viagens, histórias já esquecidas…

Mas tudo bem, lá se foram os livros para o chão, assim como todas as roupas, de cama e de uso pessoal; isso sem falar que, a partir daquele dia, encontrar uma calça, camisa, sapato, ou até mesmo a velha havaiana, ficou praticamente impossível. Tudo amontoado na sala, fora dos cabides e gavetas, a poeira tomando conta de tudo, e o nosso mestre-de-obras, o Wanderley – e sua noiva também veio ajudar -, só respondia com evasivas quando, contrariando minha mulher, eu ousava lhe perguntar sobre o fim daquele pesadelo. ” Tenha calma, meu amor, ele sabe o que está fazendo…”.

Mas lá se foi a primeira semana, a segunda, também a terceira, e agora, quando acaba de completar o primeiro mês de agonia – e as perspectivas de revermos as nossas portas ainda são muito vagas, pois de acordo com o nosso herói, o Wanderley, muita coisa ainda precisa ser feita -, estou seriamente com vontade de convidar a minha mulher para irmos passar uns tempos em um hotel. Ou, quem sabe, até tudo se resolver, em um destes muitos flats que, de uns tempos para cá, tomaram conta da cidade, onde, como recém-casados, poderíamos fazer uma segunda e prazerosa lua-de-mel. Com as portas fechadas, é claro.

 

(Arte: Rafael Werkema.)

[1/9/20]

 

3 COMMENTS

  1. Rindo muito aqui, Carlos Herculano.
    Delícia de crônica.
    Se a história for verdade, melhor ir para um flat mesmo.
    Promessa de mestre de obra é pior que declaração de amor de homem galinha (rs). Confia não.

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