A Medida Provisória 905 do governo Bolsonaro, que extinguiu o registro profissional de jornalista e está provocando a reação da categoria em todo o país, não é uma iniciativa nova de um governo neoliberal. Há 29 anos, no dia 31 de outubro de 1990, mesmo dia em que os jornalistas brasileiros se reuniam no encontro nacional da Fenaj, em Florianópolis, o então presidente Fernando Collor de Mello enviou ao Congresso um Projeto de Lei (PL) extinguindo o registro de profissões, entre elas a de jornalista.
Collor também estava no primeiro ano do seu mandato, que tinha começado com o traumático plano econômico que confiscou as poupanças; anunciava inúmeras privatizações e desregulamentações, governava por meio de uma profusão de medidas provisórias e atacava especialmente direitos trabalhistas, sob o argumento de desburocratizar e fazer avançar a economia brasileira.
Dois meses antes, em agosto de 1990, Collor já havia extinto, por meio da Medida Provisória 215, o imposto sindical – equivalente a um dia de trabalho e descontado do trabalhador uma vez por ano –, principal fonte de recursos dos sindicatos. Ato unilateral do governo, sem discussão prévia com os trabalhadores, com a sociedade – como a extinção do registro, que nasceu como Medida Provisória, mas, não se sabe bem por que, se transformou em PL.
As semelhanças entre 1990 e 2019 não são meras coincidências.
O PL de Collor
O PL do presidente Collor ganhou o número 5.884. Seu texto era muito simples; o primeiro artigo dizia:
“Art. 1º – Fica extinto o registro de profissões e abolidas as demais formalidades administrativas no âmbito do Ministério do Trabalho e da Previdência Social como requisito para exercício profissional de qualquer categoria.”
Este artigo tinha mais dois parágrafos dispondo que os registros existentes no MTPS poderiam ser absorvidos pelas entidades de classe, para sua guarda, mediante requisição no prazo de 180 dias.
O segundo artigo dizia:
“Art. 2º – O funcionamento das empresas de trabalho temporário independe de prévio registro junto ao MTPS.”
O terceiro artigo, de praxe, dizia que a lei entrava em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário. E era só.
A luta dos jornalistas
O jornal Pauta, do SJPMG, registrou a evolução do assunto em seguidas edições (foto). Outras matérias publicadas no jornal na mesma época refletem bem a pauta governamental e o ambiente nacional da época. Informatização das redações, livre negociação com os patrões, ética profissional e democratização da comunicação são alguns dos metas, além dos já citados. Tudo isso quando ainda eram comemorados os avanços da Constituição de 1988, entre eles a criação do Conselho Nacional de Comunicação e a regionalização da produção televisiva. Estes avanços, porém, mal saíaram do papel até hoje.
Conforme definido no encontro da Fenaj, foi deflagrada uma mobilização nacional dos jornalistas em defesa do registro. O Sindicato abriu a discussão com a categoria, que manifestou posições diversas, registradas em artigos publicados no Pauta.
Ao mesmo tempo, juntamente com a Fenaj e demais sindicatos de jornalistas, o SJPMG atuou fortemente sobre o Congresso Nacional. Jornalistas mineiros eleitos deputados federais, como Tilden Santiago, ex-presidente do SJPMG, e Nilmário Miranda, participaram ativamente da luta.
Em dezembro de 1990, o sindicato dos jornalistas de São Paulo foi sede de um encontro nacional de entidades representativas das 14 profissões atingidas pelo PL de Collor. Enquanto isso, em Brasília, a Fenaj acompanhava diariamente a tramitação do projeto.
Fim do diploma
O entendimento sobre o PL 5.884 era clara: se o registro era extinto, igualmente acabava a obrigatoriedade do diploma em curso superior para exercício da profissão de jornalista. O fim da “burocracia” estatal de registro das profissões embutia a desregulamentação da atividade, pois o diploma era a principal exigência para o registro.
O exercício da profissão de jornalista era então regulamentado pelo Decreto 83.284, de 13 de março de 1979, que deu nova regulamentação ao Decreto-Lei nº 972, de 17 de outubro de 1969. No seu artigo 4º, ele dispunha: “o exercício da profissão de jornalista requer prévio registro no órgão regional do Ministério do Trabalho, que se fará mediante a apresentação de:
I – prova de nacionalidade brasileira;
II – prova de que não está denunciado ou condenado pela prática de ilícito penal;
III – diploma de curso de nível superior de Jornalismo ou de Comunicação Social, habilitação Jornalismo, fornecido por estabelecimento de ensino reconhecido na forma da lei, para as funções relacionadas nos itens I a VII do artigo 11;
IV – Carteira de Trabalho e Previdência Social”.
Em outras palavras: o singelo PL de três artigos mudava radicalmente a profissão de jornalista, como faz agora a MP 905, do governo Bolsonaro; praticamente extinguia todos os direitos conquistados durante décadas, entre eles a exigência do diploma, a jornada de trabalho especial, o pagamento de horas extras, o piso salarial, o reajuste anual e tudo mais, que constam das Convenções Coletivas de Trabalho assinadas pelos sindicatos dos jornalistas com os sindicatos patronais. Era o PL dos sonhos dos patrões, que sempre quiseram contratar seus jornalistas sem ter que respeitar nenhum direito.
Substitutivo
Em março de 1991, representantes dos sindicatos de jornalistas de todo o país e da Fenaj reuniram-se em Brasília e elaboraram um texto substitutivo para o PL do governo. O texto, encaminhado às lideranças partidiárias, também era muito simples. Ele basicamente mudava a redação do Artigo 1º, que ficava assim:
“Art. 1º – Fica extinto o registro de profissões e abolidas as demais formalidades administrativas no âmbito do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, transferindo-se tais atribuições para as entidades representativas das categorias profissionais, mantendo-se inalterados os demais artigos contidos nas leis que regulamentam essas profissões”.
O parágrafo único do mesmo artigo estabelecia prazo de 180 dias para as referidas entidades requisitarem os arquivos de registros do MTPS, passando a se responsabilizar pelos registros.
Ou seja, o substitutivo das entidades representativas dos trabalhadores mantinha a regulamentação das profissões e avançava, dando a estas a atribuição de se responsabilizarem pelo registro dos profissionais.
Essa mudança era capaz de retirar no PL de Collor – como agora pode fazer o mesmo com a MP de Bolsonaro – seu caráter autoritário e desregulamentador das profissões, que eliminaria, numa penada todos os direitos trabalhistas conquistados durante décadas e décadas de luta.
Congresso extra
Prosseguindo na mobilização dos jornalistas, a Fenaj realizou em abril de 1991 um congresso nacional extraordinário, em Brasília, que tinha na pauta a luta contra o PL 5.884. Nos dias seguintes, novo encontro nacional, dessa vez de todas as categorias profissionais ameaçadas.
No meio do caminho, os jornalistas foram fortalecidos com a manutenção, pelo Congresso Nacional, da aposentadoria especial de jornalista, de 30 anos, em votação realizada em junho de 1991. A atuação da Fenaj, presidida então pelo mineiro Luiz Carlos Bernardes, o Peninha (1991-1992), ex-presidente do SJPMG, e em seguida por Américo Antunes (1992-1998), também mineiro e ex-presidente do SJPMG, foi decisiva.
A Fenaj conseguiu indicar como relator do PL 5.884 o deputado Paulo Rocha (PT-PA), que apensou ao projeto o texto substitutivo proposto pelos jornalistas. No começo de 1992, o PL se encontrava na Comissão de Redação da Câmara Federal.
A pauta política do país no entanto tinha mudado muito; com as denúncias de corrupção envolvendo Collor, a insatisfação com o governo do primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura crescia e a campanha do impeachment ganhava as ruas.
O PL 5.884 foi engavetado e nunca foi votado. Com o fim da legislatura, caducou, porque projetos não votados não passam de uma legislatura para outra.
“Tudo isso é importante para a gente ver que não tem luta perdida, depende de mobilização e articulação”, avalia Américo Antunes.
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[27/11/19]