Vai passar! Por Márcia Lage

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Vai Passar!
Por Márcia Lage

Ando muito preocupada comigo mesma. Tenho lido cada vez menos, o que me deixa um pouco sem assunto. Falo de livros, de jornais e de revistas, não de leituras rápidas e rasas na tela do meu celular. Para ver se amplio conhecimentos nessa época de samba de uma nota só, andei fazendo uns cursos caríssimos de gente que se diz o fodão nisso e naquilo.

Além de não acrescentarem nada ao que eu já sei, dão-me uma indigesta sensação de logro. O dinheiro que já gastei com professores que se vendem como deputados do Centrão daria para assinar um ano de jornalão, de revistas especializadas com gente séria escrevendo artigos e feito até uma pós-graduação em faculdade tradicional, com mestres e doutores cheios de experiência de vida, projetos, debates e intervalo para o cafezinho com colegas de carne e osso.

Vai passar, dirão vocês. É tudo culpa da pandemia, logo tudo volta ao normal. Ou ao novo normal, onde tudo vai ser rápido, raso e virtual. Apresento minhas objeções: quero de volta meu café da manhã lendo O Globo ou a Folha, com tempo suficiente para perceber nas entrelinhas e nos editoriais se eles querem derrubar o governo ou apenas estão tão perdidos quanto nós. Quero pegar o Caderno de Cultura (acabou?) e ler a resenha bem escrita sobre um filme ou uma peça de teatro, conferir pessoalmente e debater com o amigo, no vinho depois do evento, aspectos concordantes e discordantes da crítica. E manifestar minha própria opinião a respeito.

E se isso nunca mais for possível? Se os donos dos jornais e das revistas migrarem todos para a rapidez e a baixa profundidade das notícias e resenhas virtuais, porque as pesquisas indicam que as novas gerações não gostam de ler mais do que dez linhas? E se tudo virar vídeo ou PodCast e ninguém nunca mais sair de casa para ir ao cinema ou ao teatro? Se os livros que já existem mofarem e esfarelarem em bibliotecas que ninguém visita, enquanto milhares de escritores – eles se multiplicam mais do que Gremlins – entopem as mídias virtuais com seus escritos ruins?

Depois de mais de 400 dias de isolamento social (mais porque não quiseram socializar comigo do que por vontade própria) saio às ruas da minha cidade e de outras a farejar o fedor do Novo Normal por onde o medo passou e ainda passa. Vejo o mundo dividido em três classes: os que produzem, os que entregam e os que trabalham em home office para quem produz. Os primeiros ficaram mais ricos com a pandemia; os segundos, mais pobres; e os terceiros são os novos escravos, pois além de trabalharem 24 horas por dia perderam o gosto pela liberdade. Competem para ver quem surta primeiro.

Os filhos são criados pelo Youtube, onde aprendem de um tudo, menos a serem educados. Cada membro da família fala uma língua diferente, mas tudo bem. Nada que o Google não resolva. Um celular até para o bebê e fim do chororô e das discussões sobre paternidade responsável, divisão de tarefas domésticas, brincadeiras infantis. Esses assuntos chatérrimos.

Devagarinho vamos nos esquecendo também de colo, abraços, beijos, daqui a pouco acaba o sexo, tudo muito perigoso. O fosso geracional se aprofunda até entre irmãos. Os mais jovens sabem sempre mais que os mais velhos e o velho mesmo, o antigo ancião, guardião da história e do tempo, virou modelo sem atualização, que não aceita novos aplicativos.

Jogo os búzios para mim mesma e o que vejo não é nada alvissareiro: uma pessoa ultrapassada, que frequenta insalubres salas de cinema e teatro; que perde tempo em pizzarias em vez de chamar o Uber-Eats; que lê livros impressos e canta músicas de outros velhos, tipo Chico Buarque, quem é esse cara? Que interrompe gente ao celular para puxar assunto; que não entende as postagens de fotos de mulheres grávidas no mesmo dia em que uma menina estuprada faz aborto legal; que acha ruim a aula de filosofia do cara da favela; que não vê graça nos posts engraçados da candidata de esquerda; que se irrita com a demora dos tutoriais a entrar logo no tema; que acha o Tik Tok a maior das bobagens…. Enfim, velha.

Como seu avô e sua avó, como sua mãe e seu pai. Fora de moda. Out. Por autodeterminação. Ou por imposição de invisíveis “outros”.
O presente é incerto e “dèjá-vu” ao mesmo tempo.

Na política, as mesmas safadezas, os mesmos mitos de pés de barro, os mesmos santos do pau-oco nas igrejas de todos os credos. Onde deveria haver confiança, abuso. Onde deveria haver justiça, condenação. A cultura rasteja no mais baixo funk, na velhíssima rima da sofrência machista travestida de romantismo. Ninguém mais lê poesia. Nem mesmo vai ao cinema, extinto de vez pela pandemia. O filme tipo B é enfiado em nossa casa pela gosto médio dos “Streamings”. Nunca mais o rugido do Leão, o voo do Condor, a tocha acesa.

O 20th Century chega ao fim de forma decadente. O século 21 promete a nossa sobrevivência. Se ficarmos quietinhos em casa e não atrapalhar os planos econômicos dos 1% da população mundial que domina o Globo. Bravo! Como cantou Chico Buarque nos tristes anos da Ditadura, por nos deixar respirar, por nos deixar existir, Deus lhe pague.

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