Depois de quatro meses ou mais de isolamento, para diante do grande espelho ao lado da porta do banheiro. Tenta não se assustar ao ver o reflexo. Aliás, com o que não vê. Lá está apenas uma máscara negra. O nariz chato, os olhos esverdeados, vazios e cansados de ler escrever e corrigir palavras e conceitos não estão à vista. Os cabelos brancos, teimosos em crescer apenas para os lados da cabeça, desapareceram, assim como o peito magro e a barriga lanhada de rugas e cicatrizes de cirurgias doídas e necessárias. E as pernas finas e manchadas? Lembrou-se do aviso de um amigo: “Depois dos 60, começamos a ficar invisíveis…”.
Havia certa verdade nessas palavras. Na recente liberdade de idas e vindas, entrava nos bares, nas festas e sentia-se pouco notado. Não atraía mais olhares femininos e poucos, poucos dos velhos conhecidos acenavam ou se aproximavam para falar dos velhos tempos, de peladas e aventuras nas noites boêmias da cidade. Mas não era isso. Sumira de vez? Não, não podia ser. Pelo menos não notara olhar de espanto no entregador de marmitas, nos vizinhos do prédio ao descer à área aberta da garagem para tomar o sol da manhã.
Afastou-se do espelho e entrou para o banho. Estranho. Sentia o corpo sob o sabão espumoso, com cheiro de flores, e a água morna. Quis chorar, mas não havia lágrimas naquela tristeza cultivada desde os últimos dias de março, quando veio a ordem: “Fique em casa, lave as mãos, use álcool em gel e cubra a boca e o nariz”. Claro, tratava-se de um truque da mente. Ela entra em transtorno diante do medo acentuado, do incompreensível desconhecido, do grande acaso que chegou de repente.
Durante anos viveu à mercê do acaso na profissão. Almoçava e deitava-se desassossegado. À espera dele para voltar correndo à redação. O desabamento do pavilhão da Gameleira, o deslizamento na Barraginha, o rompimento dos rejeitos em Mariana e Brumadinho, os tsunamis. Até o desastre aéreo que levou os Mamonas Assassinas o fez correr ao trabalho. Mas nunca deparara com inesperado tão grande e ameaçador. Como vira em um filme, de qual semente ou raiz nasceu essa coisa para nos tirar a paz e milhares de vida?
De certa forma, sentia até certo alívio em não ser ver mais. Nessa prisão domiciliar, já não suportava mais ver aquele corpo maltratado pelo tempo. Perguntou às paredes da exígua morada se o mundo está em mudança. Profunda? Seria preservado, como em metamorfose, para uma nova realidade? Na dúvida, decide jamais tirar a máscara. Quem sabe seria ela sua identidade nessa passagem rumo à nova realidade, ao novo normal, como pregam os arautos do rádio e da TV? Na dúvida…
(Ilustração: Quinho. Arte: Rafael Werkema.)
[1/9/20]
Simplesmente maravilhoso!
Estamos de volta. O que nunca deveria ter acabado. As nossas boas histórias.
Maravilhosa a sua crônica. Me lembrou um jovem filósofo, Pedro Duarte que acabou de publicar um livro. ” A pandemia e o exílio do mundo”. Em algum momento ele diz: ” solidão é estar longe dos outros e sem companhia. Mais: é perder até de si próprio, uma vez que não se teria o reconhecimento dos outros, através do qual nos tornamos e aparecemos no mundo”
Obrigado, Ju,
Como sempre, e desde a nossa juventude em que brincavamos de fazer um jornal (O Tiro), já admiro essa sua facilidade de escrever dessa forma gostosa de ler. Adorei a crônica. Parabéns amigo cinquentenário!
Obrigado mana,
Arnaldo, os amigos que ainda estão aqui tentando sobreviver, te amam. Quando puder, vamos tomar uma cerveja. Admiro você e o seu texto. Abraços de luz para você. Déa
Me senti dentro dela, falou pra muita gente na atualidade. Perfeita a crônica, no sentido exato da palavra, parabéns.