Jornalistas brasileiros encontram forma de produzir conteúdo exclusivo e manter-se no mercado

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Por Júlio Lubianco, no blog Jornalismo nas Américas.

O jornalismo é um trabalho coletivo, mas jornalistas brasileiros têm subvertido essa regra ao lançarem veículos individuais, desenvolvidos pela necessidade que têm de publicar reportagens de fôlego e análises de políticas públicas e outros assuntos sem espaço nos veículos tradicionais.

Duas décadas depois do surgimento e proliferação dos blogs, iniciativas individuais continuam hoje como forma de jornalistas perseguirem suas paixões e desenvolverem suas marcas pessoais, com direitos a furos de reportagem e ao desenvolvimento de novos produtos e modelos de negócio

O Centro Knight conversou com três jornalistas brasileiros que criaram os seus próprios meios de informação e vêm atuando de forma independente e solitária, com diferentes níveis de impacto e sucesso, mas com desafios e objetivos similares em torná-los relevantes para o público, consolidar as suas marcas pessoais e criar fontes sustentáveis de receita.

No Brasil Real Oficial, Breno Costa escreve uma newsletter diária sobre as principais publicações do Diário Oficial da União, com insights e contexto para uma audiência disposta a pagar pelo conteúdo. Já na Agência Sportlight, Lúcio de Castro coleciona prêmios com reportagens investigativas sobre os negócios pouco transparentes do esporte brasileiro. E no Blog do Berta, Ruben Berta acumula furos sobre os bastidores do poder local no Rio de Janeiro.

Traduzindo as entrelinhas do Diário Oficial da União

Desde o início do ano, Breno Costa tem se dedicado a acompanhar detalhadamente os atos oficiais do governo do presidente Jair Bolsonaro publicados no Diário Oficial da União. Diariamente, o jornalista leva cinco horas para ler todas as novas normas, regulamentos e decisões do governo e editar uma newsletter com os assuntos de mais relevância.

No Brasil Real Oficial, ele traduz o texto burocrático das normas estatais para o essencial necessário para quem precisa daquela informação, com destaques adicionais que julga relevante. Em poucos meses, são 22 mil inscritos na versão gratuita, enviada toda sexta-feira, com os destaques da semana. E um número não divulgado de assinantes que pagam R$ 29 por mês para ter acesso ao conteúdo diário com as principais mudanças nas regras de funcionamento do país oficializadas naquele mesmo dia.

“Não se trata de um clipping do Diário Oficial. Tem um trabalho jornalístico por trás, de contextualização e de mostrar os interesses beneficiados e contrariados com cada medida”, disse Costa ao Centro Knight. “O público é quem está interessado em ver o desenrolar das políticas públicas. Consultores, servidores, pesquisadores. Tenho como assinantes deputados federais, empresas multinacionais, mineradoras, escritórios de consultoria”, descreve o jornalista.

Costa tem uma trajetória profissional associada ao jornalismo independente. Em 2014, foi um dos fundadores do Brio, uma plataforma que se propunha uma referência para leitores que buscam grandes reportagens e jornalistas interessados em produzi-las. A iniciativa não deu certo e o Brio se transformou num veículo de treinamento e reciclagem de jornalistas, através de mentoria e cursos online.

Antes disso, o jornalista trabalhou na imprensa tradicional. Foi repórter da editoria de cidades do Jornal do Brasil, depois seguiu para a Folha de S.Paulo, onde cobriu política em Brasília. Ele se destacou justamente pela disposição de ler diariamente o Diário Oficial e a capacidade de encontrar pautas em meio ao jargão burocrático dos órgãos do governo. “Fui ganhando confiança de que haveria pautas ali, não todo dia, mas com uma boa frequência. Não é a regulamentação normativa, mas as entrelinhas. O fato de você acompanhar, você entende o contexto melhor e consegue fazer correlações”, disse Costa.

No final do ano passado, diante da oportunidade gerada com a mudança de governo e da necessidade de criar uma alternativa de trabalho rentável, o jornalista desenvolveu o projeto do Brasil Real Oficial. Inicialmente, o objetivo era consolidar a sua marca pessoal, através de um retorno às suas origens como jornalista especializado em decifrar atos normativos do governo. Mas a oportunidade de monetização veio muito antes do que ele esperava.

“Hospedei o Brasil Real na Substack, uma startup de gerenciamento de newsletters que tem a opção de monetização. Logo no início, minha base de assinantes cresceu exponencialmente e a equipe da Substack entrou em contato comigo para sugerir iniciar logo monetização. Me ofereceram um adiantamento que me permitiu ficar sem muita pressão de ver resultados imediatos por seis meses”, conta Costa.

O jornalista afirma que o Brasil Real Oficial já atingiu 60% da meta de assinantes pagantes que considera ideal para garantir a sua dedicação exclusiva ao projeto. “Ainda não fiz divulgação paga, tem sido tudo orgânico. O crescimento é no boca a boca. Estou confiante de quando eu começar a investir em divulgação, vai crescer bastante”, prevê o jornalista.

Num momento em que o movimento de startups, incluindo as de jornalismo, estimula a cultura do crescimento rápido, rodadas de investimento e um esforço concentrado do negócio, Costa se inspira no livro “Company of One: Why Staying Small Is the Next Big Thing for Business”, de Paul Jarvis. “Ele escreve que não é porque você é empreendedor que você tem a obrigação de crescer. Foi um alívio para mim. Posso manter o meu negócio pequeno. O trabalho não vira um fardo gerencial. Meu objetivo é manter as coisas de forma mais artesanal”, diz Costa, que mora em Florianópolis.

Mesmo decidido a manter um ritmo mais lento, ele planeja lançar um site até o fim do ano, que hospedará a newsletter, mas também será uma plataforma para publicar as suas próprias reportagens, baseadas em informações que vem colhendo dos Diários Oficiais desde o início do ano. “Os novos tempos do jornalismo indicam que, assim como você tem os influenciadores digitais, o jornalismo também pode triunfar a partir de um esforço individual”, analisa Costa.

Investigação sobre os negócios do esporte

O relativo bom desempenho financeiro de Brasil Real Oficial, com um grupo de assinantes disposto a pagar por informação, é raridade no mercado de jornalismo, por mais importante que seja o conteúdo produzido.

Mesmo assim, há iniciativas de jornalistas que, por persistência ou teimosia, insistem em oferecer ao público aquilo que foram treinados para fazer, mesmo que não haja nenhuma remuneração, pelo menos por enquanto.

O jornalista Lúcio de Casto (foto) é um desses casos. Com uma trajetória marcada pela cobertura dos bastidores do esporte, para além do tradicional campo e bola, ele lançou a Agência Sportlight de Jornalismo Investigativo em dezembro de 2016 para dar vazão às reportagens que queria produzir, mas não encontrava interesse nos principais veículos de comunicação.

“O nome é pomposo (inspirado no famoso Spotlight do The Boston Globe) porque achei necessário um nome que desse mais peso, para eu ser levado a sério quando eu precisasse entrar em contato, por exemplo, com gente da Presidência, dos governos, de empresas. Muita gente acha que tem uma multidão comigo, mas sou só eu”, afirmou Lúcio de Castro ao Centro Knight.

Com mais de duas décadas de jornalismo, o repórter passou pelas principais redações do país e colecionou prêmios nacionais e internacionais. Mas o tipo de investigação que faz se chocou, na avaliação dele, com interesses econômicos dos próprios meios em direitos de transmissão e coberturas esportivas.

“A Agência Sportlight nasce de um banimento que sofri, que revela muito da falta de vontade do jornalismo brasileiro de fazer um certo tipo de jornalismo. É óbvio que muitos meios têm excelentes profissionais. Minha carreira é marcada, no esporte, pela apuração sobre uso de dinheiro público, bastidores da realização de grandes eventos. E os meios não querem isso, porque há uma confusão de interesses entre direitos de transmissão, eventos. Em dado momento, o mercado estava fechado pra mim e minha solução foi criar isso aqui para continuar trabalhando”, disse o repórter.

Em dois anos e meio, a Agência Sportlight já publicou 113 matérias, com média de 30 mil visualizações para cada uma e picos de 100 mil acessos. Entre os trabalhos, está o “Dossiê Nuzman”, uma série de 32 reportagens que mostraram o lado B das Olimpíadas Rio 2016. Carlos Arthur Nuzman era presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e responsável principal pela organização do evento.

Baseada em dados e documentos públicos, a série revelou que, nos bastidores, a Rio 2016 se converteu num imenso negócio entre amigos. Os negócios escusos do ex-presidente do COB o levaram a ser preso em 2017, por suposta compra de votos para a eleição do Rio como sede dos Jogos. O ex-governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, preso desde 2016, recentemente admitiu o pagamento de propina para a conquista do Rio, numa tentativa de acordo de delação premiada para redução de pena.

“O Dossiê Nuzman me confirmou que é possível o jornalismo andar na frente dos órgãos de investigação. Pessoas ligadas à investigação que levou à prisão de Nuzman me disseram que usaram as reportagens como ponto de partida para outras descobertas. A gente não precisa fazer só jornalismo declaratório ou de vazamento. Este é caminho no qual eu acredito”, disse Castro.

A série de reportagens recebeu o prestigioso Prêmio Petrobras de Jornalismo, em 2018, e foi menção honrosa no Prêmio Latinoamericano de Jornalismo Investigativo, oferecido pelo Instituto Prensa y Sociedad (IPYS).

Apesar do reconhecimento, o jornalista ainda está longe de garantir dedicação exclusiva a sua Agência Sportlight, pois ele mesmo admite que nunca fez da busca por sustentabilidade financeira uma prioridade. Por enquanto, ele mantém trabalhos paralelos para pagar as contas, enquanto apura suas reportagens investigativas.

A falta de dinheiro, no entanto, é uma limitação para a produção de reportagens de ainda mais fôlego: “Não procurei anúncios, nem pessoas colaborando. A gente está tão dentro que acaba esquecendo do dinheiro, mas em algum momento, a situação aperta. Não posso me dar ao luxo de investir dois ou três meses numa apuração. Tento achar um meio termo entre manter a frequência de publicações e a profundidade dos assuntos. Ter um Petrobras e um YPIS, com o meu negocinho tão pequenininho, dá um prazer muito grande”, afirmou Castro.

Cobertura solo da administração pública no Rio

Ruben Berta trabalhou 17 anos no jornal O Globo, o maior do Rio de Janeiro, cobrindo principalmente o governo estadual e a prefeitura da capital. No início de 2017, saiu do jornal em meio aos cortes que se tornaram comuns nas rotinas das grandes redações. Sem nunca ter trabalhado em outro lugar e num mercado em retração, lançou um blog para continuar fazendo o acompanhamento sistemático do poder local.

“Abri de forma bem artesanal, blog supersimples, comecei a postar notícias que ia cavando no meu dia a dia. Durou uns três meses. Serviu como um grande portfólio. Mostrar para o mercado que estou vivo, produzindo notícias. Nesse sentido, deu certo, rapidamente eu comecei a receber propostas de trabalho”, disse Ruben Berta ao Centro Knight.
Ruben Berta (Cortesia)

De reportagens como freelance, acabou contratado para uma rápida passagem pelo The Intercept Brasil. Teve uma experiência também com marketing político durante a campanha eleitoral do ano passado. E, em 2019, resolveu retomar um projeto do site de uma forma mais bem estruturada, relançando o Blog do Berta.

“Basicamente me programei financeiramente para passar um ano de forma tranquila, sem ter de entrar recursos. Meu prazo de validade é fevereiro do ano que vem”, disse Berta que, assim como Breno Costa do Brasil Real Oficial, entende que trabalhar a própria marca é uma necessidade para o jornalista dos novos tempos. “Quero consolidar o meu nome como referência no jornalismo investigativo do Rio, com foco em administração pública. Como repórter de um veículo, acaba que o grande público não te conhece, você é mais um”.

Uma das vantagens competitivas de Berta no mercado de jornalismo local é que, com a redução das equipes dos jornais e os problemas financeiros dos veículos, a concorrência é menor, o que equilibra o jogo quando se está entrando com poucos recursos. Mesmo assim, os custos são altos para quem não tem uma estrutura financeira por trás. O acesso a muitos dos documentos que embasam as reportagens é cobrado pelos cartórios onde estão registrados.

“Meus custos para manter o site são baixos, mas crescem dependendo da pauta. Qualquer certidão em cartório custa em torno de R$ 100. Investigar documentos de duas empresas, três pessoas, para uma apuração de mais fôlego pode sair por mais de R$ 1.000. Talvez mais para frente eu pense em fazer crowdfunding em casos específicos, mas quero antes estar com meu conteúdo mais bem consolidado”, afirmou o jornalista.

E para consolidar o site, ele precisa de reportagens exclusivas e furos que sejam capazes de expandir o público. Com uma audiência média de mil acessos por dia, ele já conseguiu picos de 45 mil graças a reportagens que viralizaram. Uma delas foi sobre o deputado estadual Rodrigo Amorim.

Na reportagem, ele mostra que o deputado, eleito pelo mesmo partido do presidente Jair Bolsonaro e muito próximo ao filho dele, o senador Flávio Bolsonaro, ocupou cargos simultâneos em diferentes órgãos públicos, entre outros detalhes da carreira anterior do político. O assunto foi notícia em outros veículos, como a Folha de S.Paulo, com o devido crédito ao jornalista.

Já na reportagem mais citada por outros veículos, ele descobriu que uma funcionária do gabinete de um deputado do PSL, partido do presidente Bolsonaro, escreveu um texto difamatório contra uma jornalista do Estadão. O presidente deu visibilidade ao texto mentiroso ao compartilhá-lo no Twitter, gerando uma onda de ataques à profissional de imprensa. A descoberta de Berta foi mencionada com crédito no Jornal Nacional, o mais importante noticiário televisivo do país.

Enquanto garimpa as suas histórias em documentos e registros oficiais, Ruben Berta trabalha também para viabilizar o site como fonte de renda. Recentemente, iniciou a venda de produtos, como camisetas com frases políticas e ligadas ao jornalismo. E nos próximos seis meses, pretende iniciar outras formas de captação de recursos.

“Me dei esse prêmio de estar um ano de fazer o que estou fazendo. É muito difícil viabilizar isso de forma consistente, mas também não é impossível. Independentemente do que acontecer, cada dia eu sou um profissional melhor do que eu era ontem. Isso é bem legal. Esse período agora do blog, nesses últimos dois anos, foi muito mais enriquecedores do que os últimos dez anos. Me sinto ganhando muito mais profissionalmente agora”, disse o repórter.

(Publicado pelo blog Jornalismo nas Américas, em 17/7/19. Crédito da foto: cortesia.)

 

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[19/7/19]

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