Os bastidores da cobertura do ET de Varginha e o jornalismo literário com cores locais

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capa do livro Os ETs de Varginha, de Margarida Haloc
capa do livro Os ETs de Varginha, de Margarida Haloc

por Pedro Varoni
Observatório da Imprensa

O caso do ET de Varginha já motivou reportagens, documentários, programas de humor, abordagens sensacionalistas. Há, entretanto, um ângulo pouco explorado e que sustenta o lançamento de um livro recente, “Os ETs de Varginha: bastidores de uma cobertura de outro mundo” (Página Editora), escrito por Margarida Hallacoc. No verão de 1996, quando se teve notícia do fato -boato? delírio? quem saberá?- da chegada de um extraterreste no bairro Jardim Andere, em Varginha, Margarida era uma jovem repórter da sucursal local do jornal Hoje em Dia. O ângulo explorado por ela é, justamente, o desafio do jornalismo em cobrir uma história tão cheia de nuances e mistérios. Como aplicar os ensinamentos da faculdade recém terminada, diante de uma demanda que escapava às teorias?

Na prática, era foca, ingênua e deslumbrada com a profissão. Aprenderia, na porrada, que ninguém é imparcial. Todos somos nós mesmos quando trabalhamos e nós não somos imparciais. O que muda é o percentual de cuidado e esforço que cada profissional empenha na hora de passar adiante uma informação.

É ali, aquele contexto e com os recursos que dispunha, que o relato de Margarida vai tecendo os fios que revelam, antes de tudo, procedimentos deontológicos do jornalismo diante de uma pauta inusitada. É nesse ponto que a história de Margarida se entrelaça à minha. Eu também era jornalista em início de carreira, no caso a chefia da redação da EPTV/Sul de Minas, seis anos depois da minha chegada a Varginha, recém-formado. Margarida tem melhor memória, preservou suas anotações e estava na linha de frente, a reportagem, o lugar mais nobre do jornalismo. Mas a gente se deparava com problemas parecidos. Expressões como fake news ou desinformação ainda não havia sido inventadas. Mas era difícil acreditar que um extraterreste foi visto num terreno abandonado, levado pelo exército até o hospital da cidade e, depois, seguindo um destino ignorado. O que era fato, o que era boato? Foi um teste pesado para um jovem chefe de redação, como era para a repórter iniciante.

Quando algum me pergunta a respeito da história, creio ter dado depoimentos frustrantes. Não sei apresentar indícios diferentes do que já circulam e também não consigo aderir fácil à desqualificação do acontecimento. Talvez por isso, me identifiquei com o texto de Margarida e devorei as suas 200 páginas com curiosidade e nostalgia, o prazer de reler por um ângulo próximo, o que eu mesmo tinha vivido. O temor da perda da credibilidade, a busca pela audiência, o respeito às fontes e aos leitores, uma incapacidade de ligar os fios da história. O que é notícia? O que não é? Até hoje essa pauta ressoa como espécie de paradigma na minha história de jornalista. Relutei um pouco para entrar na história, mas fui tomado por vários apelos: do comando da rede Globo, que atestava a credibilidade dos ufólogos envolvidos, ao movimento da cidade, onde não se falava de outra coisa.

Extrair uma matéria desses bochichos, sem parecer que nós do jornal, também entramos numa onda cósmica além da conta era meu desafio. Reportar, não ignorar, sem parecer ridícula, sem expor o veículo que eu trabalhava a chacotas desnecessárias (…) encontrar um meio termo e seguir em frente era o que me tirava o sono por aqueles dias.

O texto caminha ao melhor estilo de um jornalismo literário com cores locais. Original, direto, sem artifícios ou maneirismos. Margarida nasceu e se criou no sul de Minas, tem origem rural e já demonstrava aquela altura um talento especial para cultivar fontes, uma curiosidade em cruzar informações. Produziu um texto vivo que, lido na perspectiva de hoje, retrata uma época, um contexto e um certo olhar para a terra, o que nos faz apostar na importância da dimensão de um jornalismo literário local. Cada comunidade tem seu jeito de contar suas histórias, e essa diversidade é também potencializada pelo jornalismo, algo que Antônio Candido chamava de sentimento de localidade, que ultrapassa o aspecto geográfico e alcança as formas de intercâmbio.

O livro narra casos que procederam a tal chegada do ET, uma série de outros avistamentos de naves nas cidades da região, relatos de pessoas abduzidas. Um surto coletivo de olhar para o céu é o cenário para manifestação de pessoas que trouxeram suas histórias antigas, diante da iminência de um acontecimento intergaláctico. Havia essa atmosfera no ar, disso me lembro bem. A incrível história de um vaqueiro que fora abduzido algumas vezes, tinha um estranho caroço no pescoço e que, onde chegava a energia elétrica queimava, por isso não conseguia ser atendido pelos médicos. Ou então das velhas senhoras que trabalhavam no tear, na serra da Tormenta, em Carmo do Rio Claro, que relatavam a presença de naves nas noites estreladas. Sem contar o dia em que, em muitos pontos, entre Varginha e Três Corações, as pessoas viram objetos voadores não identificados.

O telefone tocou o dia inteiro na sucursal do Hoje em Dia, com várias pessoas de Varginha e cidades vizinhas relatando avistamentos no céu, como descrições do objeto redondo que havíamos visto, ou outros formatos como micro-ônibus, submarinos, um charuto gigante.

Havia assombro, curiosidade, expectativa. Reunião de ufólogos a portas fechadas, seguida da divulgação de um manifesto.

Os ufólogos brasileiros abaixo representados (….) após mais de três meses de intensas investigações ( …) não têm mais a menor dúvida do que ocorreu em Varginha, Minas Gerais, no dia 20 de janeiro, e nos dias imediatamente seguintes, do mês corrente de 1996, uma verdadeira e complexa operação, envolvendo autoridades militares e profissionais civis, que resultou na captura de criaturas não classificadas biologicamente, para-cientificamente, chamadas de EBES (Entidades Biológicas Extraterrestes), as quais foram mantidas sob observação médica, e posteriormente retiradas da cidade.

O que dizer da visita do conceituado psiquiatra americano, John Mack e seu atestado de próprio punho. “Atesto em qualquer tribunal e coloco a minha cátedra de Harvard em jogo, se o que ouvi das testemunhas não era a pura verdade.”

Não havia ali, naquele contexto, uma estrutura de jornalismo investigativo para dar conta das demandas que um acontecimento discursivo como o do ET de Varginha provocava. O que existia era um mercado incipiente de jornalismo local em Varginha, que absorvia os recém-formados: pelo menos três emissoras de TV, rádios, jornais impressos, sucursais dos principais veículos da capital, faculdades. Jornalistas da região, do interior de São Paulo, da capital, chegavam para ocupar os postos. Essa trupe se misturava em uma cidade tradicional, o porto seco do café, como era chamada, criando um cenário interessante e dinâmico.

Um novo jogo de poder se criava. Margarida narra a ameaça de um fazendeiro que invadiu armado a redação do jornal depois da denúncia de exploração de mão de obra nas lavouras cafeeiras. O jornalismo bom quando era espelho cultural e odiado quando tocava em velhos vícios das elites.

Eram outros os tempos, sem internet, celulares. Para cultivar uma fonte era preciso dividir uma cerveja e contava muito a dimensão dos sentidos do repórter, a observação atenta, o dom da boa conversa, a capacidade de se abrir ao outro, entender seu ponto de vista.

A cara das diretamente envolvidas com o episódio era de susto, incredulidade diante daquilo que estavam vivenciando da noite para o dia. Olha que nessa época não havia youtubers, instagramers e tiktokers da vida.

O assunto aumentava audiência e vendas.

“Solicitamos 200 exemplares a mais de jornais naquele domingo. Deu nem para o cheiro. Acabou tudo nas bancas antes das 10 horas e o povo, louco, atrás de mais jornais.”

E criava um fenômeno, todos olhando para o céu.

Vasculhar as estrelas virou uma febre coletiva, o programa noturno da moda. Leigos de toda ordem se autopromoveram a astrônomos repentinos e se punham a explicar constelações e estrelas. E dá-lhe palestras em escolas, euforia total em olimpíadas astronômicas. Era o boom do céu.

O livro de Margarida não oferece conclusões sobre a história. Ao percorrer a memória da cobertura no calor do acontecimento demonstra, antes, a luta incessante do jornalismo diante de um tema, digamos, tão abstrato.

Um caboclo simples, um matuto e com vocabulário restrito, as mãos grossas, calejadas pelo trabalho duro. Por que alguém inventaria algo tão fabuloso: A pergunta ficou ecoando na minha cabeça por dias.

Há um cuidado ético. Mais do que a veracidade ou não do ET, Margarida nos oferece uma crônica de época, o modo como o jornalismo local operava numa época pré-redes sociais. A sua memória, ao estilo do jornalismo literário, não aprofunda investigações, mas fornece o mapa para os interessados.

Boaventura tinha os registros de que no dia 20 de janeiro de 1996 havia entrado no espaço aéreo brasileiro uma aeronave da Força Aérea dos Estados Unidos, na verdade um avião C-17, com capacidade para transportar quase 80 toneladas. Essa aeronave foi para o aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP) (…) Edison Boaventura também conseguira a cópia de uma autorização de voo para duas aeronaves menores e dois helicópteros, partindo do aeroporto de Viracopos, com destino ao sul de Minas, naquela noite (…) O controlador de voos Marcos Feres pedira segredo naquela época, mas hoje, reformado, já confirmou essa informação em entrevistas diversas.

Em outro momento, Margarida lembra uma versão de um Major da Escola de Sargento das Armas, de Três Corações, em entrevista coletiva.

O que ocorreu mesmo foi o seguinte: no dia 20 de janeiro estava chovendo forte em Varginha, ocorreu um temporal, e nós estávamos com uma solenidade aqui em Três Corações. Nós deslocamos dois caminhões até Varginha para que fizéssemos a manutenção prevista. Em virtude disso (…) no desenrolar de toda a história houve uma série de coincidências de fato. Havia, no Hospital Regional de Varginha, um casal de anões, onde a senhora estava grávida para ter o neném. Isso coincide com o fato de a ESA ter pego essa criatura, ter colocado no caminhão e levado para o Hospital Regional, onde o pessoal disse ter encontrado um casal de ETs (…) Naquele dia, depois daquela inacreditável fala (o vídeo está na internet para quem quiser ver), fui para casa acreditando com força no ET. Como nunca antes (…) A coletiva mais parecia um teatro malfeito para crianças do maternal. E éramos todos bem crescidinhos.

Margarida relembra histórias saborosas, como o fim de semana em que pegou seu carro e atravessou São Paulo para se encontrar com um capitão do Exército, uma de suas fontes, que, como outros envolvidos na história, fora transferidos de Três Corações após o acontecimento.

Nesse percurso, a história termina com Margarida e outros jornalistas varginhenses na pirâmide de São Tomé das Letras, num dia de folga. Uma luz misteriosa ao cair da tarde e a inquietação de quem é obrigado a duvidar por dever de profissão, mas que vislumbrando, naquele ponto da montanha, a imensidão do universo filosofa sobre sistemas solares, buracos negros, ciência e mistério.

Diante da aparição, se perguntam se cada um deles vê a mesma coisa.

Cada um no seu alcance visual, na sua interpretação pessoal de tudo.

Espécie de síntese da experiência, com a lembrança quase 30 anos depois, de uma lição que as faculdades de jornalismo não deram. Os enquadramentos não dão conta das complexidades de um real inapreensível. As coisas têm muito mais do que dois lados.


Pedro Varoni é jornalista e professor do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFSCar.

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