O último locutor humano será substituído em 2029 por apresentador virtual. Para sobreviver, o jornalista finalmente entende a necessidade de apropriar da tecnologia de inteligência artificial
Carlos Plácido Teixeira *
Jornalista | Diretor do SJPMG
Foi triste saber da despedida de Ilian Banner da bancada do Jornal Global. Ele contou para mim que foi um momento de enorme solidão, já que não tinha com quem compartilhar a dor da perda. Foram quase 40 anos de atuação como apresentador do noticiário, até 2029, quando a TV aberta finalizou a substituição de humanos por avatares nas bancadas dos telejornais.
Meu amigo dos tempos dos jornais de papel foi o último jornalista brasileiro a frequentar um estúdio. Aliás, estúdios físicos também deixaram de existir algum tempo antes.
Para quem viveu os primeiros tempos de internet, no final do século passado, foi angustiante entender que o ciclo histórico foi fechado. A digitalização de tudo no jornalismo deixou de ser tendência, com velocidade 6G, internet onipresente, inteligência artificial geral e realidade virtual.
A tecnologia pode tudo. E a velha imprensa da revolução industrial morreu.
Agora, as notícias do dia são destacadas por múltiplos personagens, cem por cento gerados por sistemas inteligentes. Quase todos os personagens sao criação de computadores no jornalismo “inteligente” do final da década. Há uma boa notícia: pelo menos os repórteres e uns poucos editores, muito poucos, sobrevivem.
Como fomos substituídos
Dois anos antes, eu acompanhei a troca das “moças do clima”, atingidas pela digitalização. Não houve dificuldades no processo. Telespectadores, mesmo os mais velhos, aprenderam rapidamente a configurar o perfil de personagens virtuais, responsáveis pelas previsões sobre as catástrofes climáticas que atingiram cidades litorâneas desde os acontecimentos do Rio Grande do Sul, em 2024.
Sem perceber, passamos pelo treinamento destinado à substituição gradual, mas contínua, de todos os jornalistas humanos. Ao invés de ver Ilian Banner todos os dias, como fomos acostumados durante décadas, passamos a escolher a cara dos locutores de acordo com nossas preferências.
Eu, por exemplo, prefiro as tailandesas ao me atualizar sobre os acontecimentos do Brasil e do mundo.
E agora, Ilian?
Encontrei meu amigo Banner em um boteco, dos antigos, no centro da cidade. Aos 68 anos, mesmo inconformado em ver que foi trocado por “jornalistas imaginários”, ele estava animado. “Vou ser jornalista de verdade”, disse, com um sorriso irônico, de quem revia o seu velho papel.
Fora do “estúdio virtual”, ele percebeu a possibilidade de usar a tecnologia como aliada. Resgatar um profissional calado durante décadas pelos interesses dos empregadores.
“Quero voltar a produzir matérias investigativas”, anunciou. Confesso que fiquei surpreso com a avaliação dele sobre os impactos da influência dos sistemas inteligentes, que transformaram a produção de notícias em um processo excessivamente burocratizado.
Reportagens investigativas foram abandonadas pela velha mídia desde o início dos anos 2010. Na década atual, perdemos contato com grandes matérias. A concorrência das empresas de tecnologia inviabilizou a nossa sobrevivência.
“Antigamente, a gente podia ter uma equipe por conta de uma matéria durante mais de um mês inteiro. Podia mandar um repórter para uma viagem internacional só para fazer uma entrevista ou confirmar uma informação. Isso acabou”, recordou. Minhas lembranças da imprensa são marcadas por crises. Ao contrário de Banner, testemunhei por dentro o fechamento de vários jornais, até assumir a minha vida de free lancer.
O que fazer?
A crise da imprensa resultou em cortes e mais cortes de vagas nas redações. A tecnologia atacou tudo que podia ser automatizado. Agora, na velha mesa de bar, chegamos ao momento propício para a construção de outro modelo de negócio. Parece contraditório, mas a gente concluiu que é possível criar um jornalismo baseado no uso da inteligência artificial, mas a partir da busca da busca de alternativas que levem em conta um novo contexto social.
“Devemos aproveitar o cansaço que as pessoas demonstram diante do excesso de influência das tecnologias sobre o cotidiano”, propôs o velho amigo. Muitos sentem saudades de quando tínhamos nossos smartphones, TVs nas paredes e relógios nos pulsos. A miniaturização tecnológica sumiu com tudo. Telas invisíveis estão em todos os cantos, virtuais como tudo. E ouvimos vozes dos nossos assistentes pessoais.
Agora sim, há um desejo de resgate de algo definido como re-humanização. A sociedade tem como se rebelar contra o excesso de concentração de riqueza. O ócio indesejado criou a demanda pela informação, rompendo com a demência cognitiva gerada pela indústria cultural e tecnológica. Animados ao nos despedir, concordamos que temos alguma chance de criar o novo jornalismo. O velho finalmente pode morrer.
- Carlos Plácido Teixeira é editor do site Radar do Futuro