Apesar de crescente internacionalização, ainda há uma supremacia de publicações dos países ocidentais do Hemisfério Norte nos estudos da área da Comunicação; publicação da USP discute como enfrentar as desigualdades da academia global
Texto: Sofia Zizza*
Jornal da USP
Mesmo com a crescente internacionalização das pesquisas em comunicação e maior diversificação das localidades geográficas em que estes estudos são produzidos, ainda há uma supremacia de publicações dos países ocidentais do Hemisfério Norte. O fato da língua inglesa ser idioma universal das pesquisas acadêmicas comprova esse ponto, promovendo uma marginalização dos acadêmicos do Sul Global, é o que afirma o pesquisador Silvio Waisbord, docente da George Washington University, nos Estados Unidos.
A discussão está no artigo Como enfrentar as desigualdades da academia global nos estudos de comunicação? Colaborações, críticas e curiosidades, que Silvio escreveu para o dossiê especial que compõe o 3° número do 17° volume da revista MATRIZes. A partir de análises das principais questões sobre a temática, o artigo propõe uma reflexão crítica e estratégias práticas para um maior reconhecimento e participação dos países do sul no meio acadêmico. Dentre elas, pode-se citar a consolidação de espaços de reconhecimento e apoio, o cultivo de redes de colaboração e pesquisa, e a participação em espaços compartilhados.
A invisibilidade do Sul
Em diálogo com diversos autores, Waisbord faz um panorama da hegemonia do Norte na academia nos estudos de comunicação. Ele afirma que mesmo com a globalização e a internacionalização do campo de estudo nas últimas décadas, “nenhum país da América Latina, África ou Oriente Médio está entre os primeiros vinte países, em termos de gastos com ciência e pesquisa, mundialmente”.
Os estudos de comunicação da América Latina revelam muitos vestígios de uma posição dominante da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Isso se evidencia através de modelos e referências que são importados e adaptados à realidade do Sul Global. De acordo com o autor e com base em outros estudos analisados para produzir o artigo, “o metabolismo constante de ideias ‘estrangeiras’ produziu uma rica tradição híbrida, impulsionada pelo interesse em peneirar bagagens teóricas e debates do Norte Global de acordo com interpretações e apropriações locais e regionais”.
No âmbito internacional das pesquisas, há uma série de normas a serem seguidas como forma de padronização. Dentre elas, a necessidade de apresentar os trabalhos na língua inglesa. “Essas dinâmicas explicam a longa história de ideias e questionamentos sobre a descolonização intelectual e acadêmica”, afirma o pesquisador.
Mudanças necessárias
De acordo com o estudo, há indícios de uma integração maior dos países do Sul no mundo acadêmico. Essa integração se dá por meio da inclusão de pesquisadores em corpos editoriais e a tradução de pesquisas para outros idiomas, além do inglês. No entanto, as desigualdades ainda são existentes e ações para mudanças estruturais devem ser pensadas para alterar esse cenário. “Não é algo que se resolve com cotas de representação”, pondera o autor.
O autor utiliza o conceito de descolonização como um motivador para tais mudanças. “As desigualdades da academia global estão enraizadas na história do colonialismo intelectual”, afirma Waisbord e lembra que qualquer mudança exige um trabalho de longo prazo. “Implica em mudar o centro institucional global dos estudos de comunicação”, diz.
De acordo com sua reflexão, é necessário “convocar ações conjuntas em várias direções e instâncias, e reconhecer que os obstáculos estão fundamentados em desigualdades econômicas e políticas”. Waisbord considera ainda a falta de curiosidade por estudos realizados nos países do Sul, por epistemologias alternativas e por diferentes tradições intelectuais, além da necessidade de priorizar a integração e o nivelamento de oportunidades ao Sul Global, de forma a reconhecer sua importância para o meio acadêmico.
Descolonial e decolonial: tem diferença?
De forma geral, o termo “descolonial” é aquele que se refere ao colonialismo, palavra que faz jus ao período histórico de colonização. Já “decolonial” se refere à colonialidade, conceito que parte da premissa de que, mesmo que o colonialismo tenha terminado, há a continuidade do poder colonial e, portanto, existe a necessidade de um movimento teórico-político de contraposição. Em que pese essa diferença, ainda há autores e tradutores que tratam os termos como sinônimos.
A decolonialidade é uma escola de pensamento utilizada primordialmente por intelectuais e ativistas latino-americanos. Seu objetivo consiste em criticar a visão eurocêntrica dos fatos e afastar-se dela, contrapondo-se à sua hegemonia e a universalidade que lhe é atribuída.
A pesquisadora e professora Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar, no Equador, explica que o termo propõe a exclusão do “s” pretendendo estabelecer uma distinção entre o significado do “des” da língua espanhola, que pode ser entendido como simplesmente “desmontar” ou “desfazer” o colonial. Tal significado permite a interpretação de que existem dois momentos, um colonial e outro não, o que leva ao entendimento de que os padrões e traços do colonialismo deixaram de existir. O termo colonialidade, por outro lado, entende e lida com a herança colonial existente, reforçando a necessidade de disputas contínuas em diversos campos para superá-la de fato.
A partir da análise e crítica a diversos autores, o estudo propõe um “Mapa de Ações” para mitigar as desigualdades geográficas existentes no âmbito acadêmico. Ele sugere três rotas possíveis que se complementam.
A primeira rota consiste em “consolidar espaços de reconhecimento e apoio”. Nela o autor sugere a participação dos chamados “acadêmicos do Sul” em diferentes plataformas e organizações, a fim de marcar sua presença, afirmando a importância de seu trabalho. A segunda rota trata da relação com colaboradores. É proposta a criação de laços com outros pesquisadores e instituições, de forma a facilitar a comunicação, desenvolver projetos em comum e conseguir apoios. Por fim, a terceira rota aconselha a participação em espaços compartilhados, tais como corpos editoriais e lideranças de associações.
“É importante construir e consolidar espaços regionais e de compartilhamento Sul-Sul/Sul-Norte dentro das instituições globais, sejam associações profissionais ou periódicos – é importante também participar de espaços situados no cruzamento de diferentes tradições e culturas acadêmicas.”Silvio Waisbord, professor da George Washington University
Revista MATRIZes
MATRIZes é a revista científica do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Lançada em 2007, a revista é uma publicação quadrimestral que publica estudos de diferentes perspectivas no campo da comunicação. Aberto a reflexões sobre tecnologias, culturas e linguagens midiáticas, o periódico é dirigido pela professora Maria Immacolata Vassallo de Lopes.
O Dossiê especial Histórias da internacionalização do campo de estudos da comunicação é o terceiro volume de 2023 da revista e conta com artigos de pesquisadores de universidades brasileiras, bem como de outros países da América Latina, Estados Unidos e Europa.
*Texto de Sofia Zizza, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação. Editado por Tabita Said.
**Estagiário sob supervisão de Simone Gomes