“Entre o corte da espada e o perfume da rosa”, sites e aparelhos ilegais são alternativas contra a exclusão digital e a concentração da mídia
Iago Vernek Fernandes
Observatório dos Direitos de Transmissão dos Futebóis
A equipe envolve o adversário em boa triangulação, inverte a bola, vai até a linha de fundo e faz um lindo cruzamento para o centroavante, que só escora e de repente tudo trava. Um círculo roda no centro da tela e nada de saber a conclusão do lance. A agonia não para por aí. Por vezes, o grito da vizinhança acusa o gol segundos ou minutos antes do fim da jogada por conta do atraso na transmissão. Imagem e áudio ruins ou descompassados. Quatro, cinco ou seis opções de canais e nenhum funciona a contento. Em cada clique, abre-se uma nova página com centenas de anúncios e propagandas.
Se você nunca passou por alguma destas situações, há duas possibilidades: ou não acompanha futebol ou paga todos os canais que exibem os jogos do seu time de coração. Na ausência de recursos, a pirataria, considerada crime de contravenção no Brasil, conforme o artigo 184 do código penal – “violar direitos de autor e os que lhe são conexos” – é a alternativa encontrada por muitos torcedores. A pena por esse delito pode chegar a detenção de três meses a um ano ou multa.
Apesar de parecer uma solução viável para driblar os preços exorbitantes, plataformas que oferecem sinais de canais por assinatura, serviços de streaming e outros conteúdos sem autorização têm sido um grande problema para o Estado. A fim de combatê-las, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) inaugurou recentemente o Laboratório Antipirataria, um centro especializado em análise de “TV Boxes”. Até o mês de agosto de 2023, a entidade afirma ter bloqueado 743 endereços de IP (Internet Protocol) e 54 domínios vinculados a estes aparelhos de recepção não homologados, num esforço que reuniu prestadoras de acesso à banda larga e fornecedores de interconexão de cabo submarino.
Moisés Moreira, coordenador do combate à pirataria na Anatel, explica que os equipamentos TV Boxes “podem roubar dados e ser operados de longa distância, promovendo ataques cibernéticos”. Desde o início dos trabalhos, já foram retirados de circulação 1,4 milhão de aparelhos clandestinos, no valor estimado de R$ 400,8 milhões. Por outro lado, conforme o Anuário da Associação Brasileira de Combate à Falsificação, o Estado brasileiro perdeu R$ 345 bilhões em arrecadação de impostos no ano de 2022 por causa da pirataria, sendo R$ 12 bilhões relacionados ao setor de TV por assinatura.
Mesmo com os esforços dos órgãos de fiscalização, não é difícil encontrar sites que veiculam exibições paralelas na internet. Ao serem localizadas e bloqueadas pelas autoridades, as páginas se multiplicam e mudam de endereço, permanecendo no ar. Assim, grupos anônimos mantêm negócios altamente lucrativos, inclusive com o patrocínio de casas de apostas, cujo mercado ganhou relevância no território nacional, mediado por plataformas digitais estrangeiras.
Longe de estar resolvida, a pirataria tem sido uma questão complexa, sem solução fácil. É possível que essa perseguição ao mercado ilegal de transmissões, a qual mais parece um episódio de “Tom e Jerry”, onde o gato busca incansavelmente caçar o rato, do mesmo modo, nunca alcançará sucesso. Enquanto isso, a população apaixonada por futebol e outros programas culturais, cercada pela concentração da mídia, por preços exorbitantes e acesso dificultado se vê, como diz o grupo Racionais Mc’s, “entre o corte da espada e o perfume da rosa”.
Transmissões de futebóis: o silêncio que antecede a explosão
No ano de 2023, dez corporações, por meio de quatorze veículos, exibiram no território nacional os oito principais torneios de clubes profissionais de futebol masculino: Champions League, UEFA Europa League, Copa Libertadores da América, Copa Sul Americana, Campeonato Brasileiro, Copa do Brasil, Copa do Nordeste e Copa Verde. Este mapeamento faz parte das pesquisas do Observatório das Transmissões de Futebóis, um projeto realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social junto ao grupo de pesquisa Crítica da Economia Política da Comunicação (CEPCOM), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), em parceria com diversos pesquisadores e jornalistas. O levantamento completo envolve ainda o futebol de mulheres, campeonatos estaduais e de seleções.
A título de exemplo, demonstraremos o gasto para assistir aos jogos do Flamengo, time com a maior torcida do país e que disputou seis torneios em 2023, veiculados por cinco conglomerados midiáticos: Campeonato Carioca (Band e SKY), Supercopa do Brasil (Globo/SporTV), Recopa Sul-Americana (ESPN), Libertadores (Globo e ESPN/Star+), Mundial de Clubes (Globo), Campeonato Brasileiro (Globo/SporTV/Premiere) e Copa do Brasil (Globo/SporTV/Premiere e Amazon Prime Video). Para assistir todas as partidas, entre TV aberta e fechada, pay per view e streaming, os torcedores do clube rubronegro tiveram que desembolsar cerca de R$ 1.400,00 (mil e quatrocentos reais) ao longo do ano ou uma média de R$ 120,00 (cento e vinte reais) mensais, além do pacote de internet, o qual tem um custo aproximado de R$ 100,00 (cem reais) por mês.
Em uma perspectiva histórica, enquanto os torcedores sofrem com a dificuldade de acesso aos jogos, algumas empresas brasileiras e estrangeiras, lucrando cifras gigantescas, se revezam no monopólio das transmissões de futebóis no Brasil. Este domínio se resume a três conglomerados presentes na televisão aberta (Globo, SBT e Band) e outros dois grupos produtores de conteúdos para TV por assinatura, pay per view e plataformas digitais: AT&T (EI, TNT, Space e HBOMax) e Disney (ESPN, Fox Sports e Star+), além da própria Globo (SporTV, Premiere e Globo Play).
Transmissões de torneios profissionais de futebol masculino no território brasileiro entre 2012 e 2023
Autoria própria
A grande maioria dos meios de comunicação mapeados pelo Observatório das Transmissões de Futebóis são privados, sendo pouquíssimos veículos públicos: TV Brasil, vinculada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), TV Cultura, controlada por governos estaduais, e outras empresas menores. Em contrapartida, agentes globais vêm aumentando sua atuação no mercado nacional, impulsionado pelo avanço das plataformas digitais. Num contexto de ampla exploração dos dados pessoais e modulação da audiência, o silêncio que antecede a explosão do gol, seja na arquibancada, na várzea, no bar ou na rua, se transforma em economia de atenção, comercializado a um alto custo por conglomerados de mídia e “big techs”.
A esquiva da esgrima: das políticas de comunicação às tecnologias digitais
Enquanto empresas de mídia, confederações e clubes de futebol obrigam torcedores a dispensar mais de um salário mínimo por ano em transmissões, o Brasil segue apresentando preocupantes brechas digitais. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2023, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), apesar de possuir 84% dos lares conectados à internet, o acesso da população é bastante desigual em termos raciais, regionais, bem como de gênero e classe.
O estudo, realizado por especialistas do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br/NIC.br), revela que apenas 30% da classe C e 16% das classes D e E possuem uma velocidade de conexão superior a 50 Mbps, sendo a maior parte (58%) destes acessos realizados exclusivamente pelo celular. Em relação às 24,9 milhões de pessoas que não têm acesso à internet no país, o perfil delas é majoritariamente negro (17,2 milhões), das classes D e E (17,2 milhões), com baixa escolaridade (23,5 milhões possuem até o ensino fundamental) e residente do Nordeste (10,5 milhões).
A plataformização e fragmentação dos conteúdos e veículos de mídia, em um cenário de convergência técnico-informacional, apesar de romper de certa forma com antigos oligopólios, têm diminuído ainda mais o acesso das camadas pobres da população aos jogos de futebol. Outrossim, ao contrário do que dizem alguns dirigentes, os preços dos ingressos nos estádios estão longe de serem populares, inviabilizando a presença de uma parcela importante da sociedade na cultura futebolística.
Os altos valores dos pacotes de TV, internet e streaming, bem como a elitização dos estádios e programas de sócios torcedores, têm sido a regra, orquestrada pela FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado) e implementada por federações e cartolas no mundo inteiro. Como alternativa, a esquiva da esgrima passa pelo conhecimento sobre as políticas de comunicação e as tecnologias digitais. No hacktivismo, a partir da liberdade de expressão e justiça social, para além dos ataques cibernéticos a corporações e governos opressores, há uma busca coletiva por direitos digitais através do anonimato para os pequenos atores e transparência para os grandes. Algumas palavras-chave neste movimento são: criptografia, software livre, código aberto, cooperativismo, segurança digital e educação para a mídia.
Ampliando nossos horizontes, Antônio Bispo dos Santos, ou Nego Bispo, escritor e lavrador quilombola, escreveu em seu livro “A terra dá, a terra quer”, publicado em 2023 pela editora Ubuntu, que “as favelas precisam piratear tecnologias, montar as suas fábricas clandestinas de bicicletas […] fazer confusão, roubar e quebrar patentes”! O autor, que deixou uma produção importante no Brasil por defender um outro mundo possível, não proprietário, contra-colonialista e que valorize os saberes orgânicos em contraposição ao modo de vida monoteista-eurocristão, afirma ainda que “a favela precisa se especializar na pirataria de tudo o que for possível, a partir da tecnologia e da sabedoria do nosso povo” (BISPO, 2023). Não é só futebol, é sobretudo cidadania e democracia.
Confira o site: https://ludopedio.org.br/arquibancada-categoria/observatorio-dos-direitos-de-transmissao-dos-futebois/