Ao acordar todo dia, no meio do pandemônio, ela se pergunta se é mesmo verdade ou pesadelo. Em que momento a ficção virou real? Qual é mesmo a página do livro onde leu que é preciso mais do que lavar as mãos com sabonetes perfumados e incrementar a limpeza, agora rigorosa, com álcool e outros tais? Quando é mesmo que decretaram que a água sanitária, antes perigosa, usada apenas na limpeza pesada, passasse a ser personagem das antessalas e do dia a dia, assunto e efeito conhecidos até das crianças?
Sem respostas, escreve. Na dúvida, escreve. Como não faz contas, não sabe direito há quanto tempo está em casa. Mas lembra-se de que tudo começou na beirada de um outono tropical que antevia um inverno sem aconchegos. Desde o início, sofre. Tem vontade de rever os amigos, saudade dos afetos só possíveis nos bares, espaços encantados de recarga, conversas e abraços sem fim.
Para ajudar o tempo, ela vê filmes, muitos filmes. Revê alguns e descobre que não se lembra deles. Na memória embaçada, reaparecem recortes e fotos coloridas coladas com grude caseiro nas portas de armários da adolescência: July Christie, Tony Curtis, Brigite, McQueen, Sofia, Delon, Franco Nero. E uma ou outra nuvenzinha de Elvis, Doris Day, Rock Hudson…
Para não sucumbir, ela também vê lives. Blues, baladas, rocks. Faz bolos, lê, toma vinhos, inventa molhos e poemas sem pé nem cabeça. Faz faxina e varre saudades pra debaixo do tapete. Às vezes, costura e borda lembranças em cores tão pálidas que ninguém vê. Compartilha dores e algumas alegrias com seu parceiro. De tão unidos, estão quase virando um só. E, juntos, ouvem sambas, muitos sambas, de Pagodinho a Aldir, de Elton a Cartola, de Paulinho a Clara, de Adoniran a Rosa. Acreditam que o samba pode ser transformador e esperam. Às vezes dançam, outras vezes apenas escutam com melancolia.
Se fosse menos insegura, talvez ela até admitisse a saudade que tem de cantar músicas antigas, alegrar corações de hoje e de anteontem, de brincar de ser cantor – como define Vander Lee, também ele partidário desse ofício mágico. Vontade de simplesmente pedir ao mundo, como Roberto Carlos, com voz bem carente, quase súplica: Olha aqui, presta atenção, essa é a nossa canção…
[3/9/20]
Muito linda, Mirtes, Parabéns. Abraços Déa
Muito boas as crônicas. Parabéns, Mirtoca, Arnaldo e Herculano.
Tô adorando ler vocês. Parabéns!
Cante, Mirtes, cante. Faça Bolos e molhos. São vacinas contra o tédio. Não tenhamos medo do novo normal. Bjo.
No meio do pandemônio, mas você resiste!
Sim, solta a voz e escreva outras cartas de amor.
Ah, Mirtes Helena, que crônica linda. Com a delicadeza da sua alma.
Olha, canta alto. Espanta até Covid. Ainda mais com a sua voz que afina até o desafinado momento que viemos. Saravá.
Grande abraço,