Casada, mãe de três crianças na pré-escola, Gilda era uma figura bem conhecida no bairro de classe média onde morava, em Belo Horizonte, naquele início dos anos de 1980. Simpática, falante, disponível e despachada, vivia por conta de casa e filhos, e não costumava esconder as dificuldades financeiras que vivia. Em tempos de crise, com o marido sempre desempregado ou subempregado, costumava pendurar contas no açougue, no sacolão, na padaria. Vendia o almoço pra comprar a janta – ela costumava repetir, com uma gargalhada solta e sincera.
Enquanto os coleguinhas dos filhos levavam refrigerantes e sucos na merendeira, Gilda preparava litros de chá gelado para suas crianças, e fazia isso com tanto esmero e carinho, que nunca se soube que os dois meninos e a menina se sentissem diminuídos ou humilhados por isso. Pelo contrário, eram altivos, orgulhosos e felizes como costumam ser as crianças bem-amadas.
Mesmo depois que transferiu os filhos para uma escola pública, quando não deu mais para pagar o ensino particular, continuou do mesmo jeito, no firme descompromisso com a tristeza. “Lá eles serão sempre os primeiros”, valorizava. Não que fosse uma mãe descuidada ou alienada. Nunca. Mas jamais deixou que a falta de dinheiro pesasse no astral da família. Escassez, só de grana.
A vizinhança mais próxima acompanhava o vaivém naquela casa peculiar com curiosidade, desdém, solidariedade ou atenção. De vez em quando, Gilda recorria a uma vizinha em busca de duas xícaras de açúcar, uma canequinha de arroz para completar o almoço, um tiquinho de óleo… E fazia isso sem esconder de ninguém, gritando da janela: “Quem me empresta uma colher de café? O meu acabou tudinho”.
É bom registrar que Gilda sempre pagava, mesmo que a vizinha se recusasse a aceitar. Fazia questão. Um dia, pediu sal e ainda reconheceu da janela, em alto e bom som, entre uma risada e outra: “Quando falta sal numa casa é sinal de que as coisas andam apertadas, né não?”
Como todos acompanhavam a vida livro aberto de Gilda, e ficaram consternados quando souberam que seu marido tinha perdido o emprego mais uma vez, ninguém entendeu quando ela chegou à janela naquele dia, desta vez para avisar, com euforia e estardalhaço, que tinha, finalmente, conseguido copiar toda a letra da canção.
Naqueles tempos sem internet, Gilda havia deixado papel e caneta cuidadosamente colocados sobre a mesinha durante dias, talvez meses. Assim, toda vez que o João Bosco começava a cantar no rádio, ela corria para copiar, rabiscando com pressa, palavra por palavra, verso por verso: “Cores do mar/ festa do sol/ vida é fazer todo o sonho brilhar/ ser feliz/ no seu colo dormir/ e depois acordar…”. E foi assim, desafinando nos falsetes e tentando imitar a voz do cantor, que aquela mulher, com muita graça e valentia, convocou toda a vizinhança à vida naquela manhã de uma quarta-feira qualquer.
Gosto do jeito como Mirtes capta o sentimento das pessoas. Parece que conheço a Gilda. E se não conheço, gosto dela por culpa da Mirtes.
Que lindo, Mirtes. Você está aperfeiçoando seu estilo e alcançando todo o potencial de seu texto. Um barato essa histo6.
Beijos da Beth Fleury
Gosto muito das crônicas da Mirtes. Leves e interessantes.
Linda crônica! Parabéns Mirtes!
Adorei a utilização do título do filme tão conhecido e a nova leitura que deu à protagonista.
Mirtes Helena sabe transformar em crônica/poesia as coisas singelas da vida cotidiana. Sabe tocar o coração da gente…
Dormir no colo de Gilda… quantas gerações?
Amei. Valeria um curta. Quero atuar. Bj
Eita, menina Boa de serviço! Belo texto, comadre.
Parabéns Mirtes, vc está se tornando uma ótima cronista.
Desmpromisso com a tristeza é muito bom. Mais um sensivel retrato falado da espécie humana que Mirtes garimpa (ou inventa) magistralmente.
Crônica deliciosa que apresenta mais uma personagem inesquecível criada por Mirtes Scalioni.