Na vida a questão maior é onde colocar o desejo? O amor é mais forte do que nós e as nossas circunstâncias?
O vaqueiro Gimirulino emenda ser preciso olhar o capim debaixo da rês. Sabedoria sertaneja é assim: prova simplicidade para sobreviver em conta.
Quem liga pras loucuras do Uauaretê a passo do lajedo onde demora? Onça velha não perdeu as garras, esturra noites a fio atrás de companhia. Não é uma qualquer.
Perdeu tudo pra ficar perto do seu amor flor-da-maravilha. Do paradeiro da Jaguaruna ninguém soube. Ela aluiu, arribou. Não estacou, né. Ele, devaneios, urros, assombra.
Doído como a fome pra pobre e bicho. Triste feito sexta-feira santa pra sacristão. Sobrou o quase nada de juízo teimoso em se desfazer, além da lembrança de um olho roxo de paixão?
Memória de elefante um dia esquece lição de amor ou vida afora anseia aventura por mais e maiores perguntas?
Mais se diz à boca miúda. Eu silencio.
Gimirulino não viu elefante, sequer em retrato preto e branco. Sabe é de vacas: prenhez, ordenha, cria. Saberia de frutos, ervas e raízes que o Cerrado oferece a bicho e gente?
Também matou onça, a Suçuarana?
Gimirulino seria a corruptela de Argemiro Lino? Eu penso nisso.
À míngua. Ensimesmado. Na terça margem, turvo espelho d’água. Deus está nos detalhes; é onde mora o diabo também. Obtuso, redemoinhado.
Gimirulino só existiu na literatura? Teve amores, mulher? Amou feito Uauaretê à Jaguaruna no pé do lajedo sob a lua nova, crescente, cheia? Eu penso nisso.
Planura, abismos. Dele eu só soube por Dirceu Mesquita Horta. Mestre em artimanhas-aulas de décadas atrás.
Talvez o homem do Rosa – se vivo estivesse – tiraria a nossa dúvida sobre o rastro do caboclo Gimirulino nessas lonjuras da existência sob pandemia.
– O sangue coalhou, acabou.
Manoel Nardy tange nuvens. Conta que fez muita baiana chorar na lida com gado. Era o tempo em que boiadas não viajavam de trem ou caminhão.
Fosse dia ou noite, às vezes, a vida é gostosa demais. Pelo feito em chão duro, ele não queria nem tinha pressa, mas um dia partiria, feliz. Destino de boi, peixe, ave, homem ou mulher.
Manuelzão deixou as páginas de “Uma história de amor” e veio se encantar, imagina, com a viúva Porcina na cidade maravilhosa do Rio de Janeiro.
A arte salva, a ignorância saúva.
Na barra do rio de Janeiro, afluente do São Francisco, onde Riobaldo conheceu Diadorim, me disse: queria experimentar maconha antes de o sangue coalhar.
Eu o vi em três ocasiões. Envolto em capa de couro, tragado pelo mar de eucaliptos que ruiu o Cerrado em Andrequicé, o sertanejo ensina que todo animal e planta têm serventia.
– Eucalipi nem marimbondo tolera.
Bicho não é bocó feito gente que aceita a monocultura. Frio e medo? Cada um faz do tamanho que quiser, receita o boiadeiro imortalizado por João Guimarães Rosa.
À mão o bule de café, Manuelzão esbanja síntese em forma de pedra atirada no lago de Três Marias:
– Como é que pode o galo tomar conta de trinta e quatro galinhas se não for com muita conversa?
De volta ao lugar de desejo: digamos então que o amor não vale a pena… Valeria a galinha inteira?
Ao que acode o compadre do Uauaretê:
– Galinha é bicho insaciave.
[19/2/21]
Que linda, Ricardo! Viajei na sua narrativa. Poesia pura!