De onde sou, por Márcia Lage

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Um certo mal-estar atrasa minha resposta, todas as vezes que me perguntam de onde sou. Fico na dúvida se digo que sou mineira ou que nasci em Minas Gerais. Ambas as opções soam como se eu fosse revelar uma coisa muito feia, algo abusivo ou violento, feito menina estuprada ou mulher que apanha do marido. E guardam segredo, por amor ao criminoso.

Demorei muito para entender a causa desse desconforto, pois é inquestionável que o estado é lindo, que os conterrâneos são gente adorável, que a comida é deliciosa e que minhas mais profundas raízes cá estão fincadas. A verdade surgiu neste fim de ano pandêmico, quando atravessei a serra da Mantiqueira para passar o Natal com a família, em Coronel Fabriciano, no Vale do Aço. De carro e sozinha, por precaução, o que possibilitou observação mais atenta da paisagem e da interferência humana
sobre ela.

Desde Paraty, onde vivo atualmente, até meu destino final, as estradas acompanham as três principais cadeias de montanhas do sudeste brasileiro. Sobe-se a Serra do Mar até à divisa do Rio de Janeiro com Minas, quando começa a Serra da Mantiqueira. Seus morros arredondados mudam de formato e altura a partir de Barbacena, onde se encontra ou se transforma na Serra do Espinhaço. A partir de Ouro Preto as montanhas são altas, pontiagudas e pedregosas, revelando o brilho do minério de ferro que as compõem. É lindo e triste.

Enquanto as duas primeiras são cobertas de verde e de parques estaduais, a última é rasgada por mineradoras, criando uma paisagem de bombardeio. Toda vez que chego a Belo Horizonte de avião fico surpresa de ver os picos das montanhas cada vez mais achatados, ocultando enormes crateras cheias de água. A geografia do Estado sorrateiramente transformada: primeiro numa espécie de queijo suíço com mais buracos que queijo. Depois, num platô árido, onde montanhas verdejantes escondiam nascentes e cachoeiras e hoje jorram lama e entopem rios.

Ao chegar de carro pela BR 040 fiquei chocada com a destruição de uma das paisagens mais bonitas da região metropolitana de Belo Horizonte. Dos dois lados da Serra do Rola-Moça, um parque estadual que deveria ser intocado, grandes máquinas sobem as montanhas construindo aterros em expiral, num bolo de noiva cujo recheio são os resíduos da lavagem do minério.

Exportado a preço de prego, deixa de royalties meros 3,5 por cento para o Estado esburacado. Minas não cobra das mineradoras nem mesmo uma ampla rede ferroviária para desobstruir suas estradas. Não há compensação financeira que justifique tamanha destruição. Ainda mais depois das tragédias de Mariana e Brumadinho.

Gastei um tempo enorme para percorrer os últimos quilômetros que me levariam de Itabirito a Belo Horizonte, depois de ter pago três pedágios de 7 reais e 30 centavos. À minha frente havia um cardume de caminhões- caçamba transportando terra vermelha e estragando a rodovia, além de levantarem uma poeira insalubre que polui tudo ao redor. Inclusive condomínios de luxo.
Se a BR 040 é uma concessão privada, como é que a empresa que administra a rodovia permite o tráfico de máquinas e caminhões das mineradoras naquele trecho? Quer dizer que eu e todos os motoristas que pagam pedágio para manutenção da estrada, estamos mesmo é subsidiando a Vale do Rio Doce, ajudando a sustentar essa indústria desumana de destruição do meio ambiente e matança de gente?

Tenho trauma de mineradoras. Na infância, morei em Nova Lima, onde meu pai trabalhava na Mina do Ferro Velho. Ficávamos sozinhas à noite, sem saber se ele retornaria. Todo dia ele contava de um colega soterrado, dos que perdiam pernas e braços esmagados pelas pedras cortadas à mão, centenas de metros abaixo do chão.

Na adolescência vivi em Itabira, uma cidade sem eira nem beira, dividida em classes sociais nos bairros que a Vale destinava aos peões, aos engenheiros, aos técnicos. Só o poeta de lá tinha faro para a tragédia, e era renegado como um leproso, por não reconhecer o progresso.

Que progresso? O que são essas duas cidades que citei senão bairros pobres de Belo Horizonte, depois de quase um século de mineração? O gentílico me condena: se sou mineira, isso significa que pertenço àqueles que cavucam a terra em busca de riqueza fácil, em total desconformidade com as leis da natureza. Se venho de Minas, sou o resultado da exploração, a commodity barata, a economia primária de um país viciado em escravidão e colonialismo. Não posso me orgulhar de ser isso, é quase tão humilhante quanto ser puta em fim de carreira, liquidando o corpo nas pensões baratas da Guaicurus. Em BH conversei sobre isso com o jornalista Mauro Werkema, que escreveu belo artigo sobre Carlos Drummond e sua revolta com as mineradoras. Inútil revolta, como a de todos nós. As mineradoras passam sobre as leis e sobre os trabalhadores, e nós ficamos a ver o achatamento das montanhas, inertes como uma besta.

Quando peguei a BR 362 (de eterna duplicação) em direção à Coronel Fabriciano, fiquei presa num engarrafamento de duas horas até Ravena, por causa dos caminhões da Usiminas, da Vale e de outras companhias de capital estrangeiro que, não contentes de acabarem com o Pico do Cauê, destroem, agora as cidades de Ipoema, Santa Maria de Itabira, Itambé, Conceição do Mato Dentro, etc etc etc. Feito o estrago, deixam de herança rodovias intransitáveis, cidades sujas, feias, pobres, que o dinheiro dos royalties não dá para reparar.

Parodiando quem disse que país que produz bananas nunca progride, pensei na infelicidade de Minas ser tão rica em minerais e tão pobre em todo o resto. Conclui que somos todos cúmplices desse atraso. Vergonhosamente cúmplices. Daí meu mal-estar de origem.

[12/2/2021]

12 COMMENTS

  1. Que relato maravilhoso e coerente! Marcinha, suas palavras me encantam ao mesmo tempo que me doem. Por tudo que você expõe com tanta sabedoria e sensibilidade. E num momento em que eu, aqui do meu canto, ainda estou remoendo a ressaca e a revolta por saber que a mineração vai esburacar e enlamear também as terras do Serro no pobre Vale do Jequitinhonha. Pensava que nunca chegaria lá, que a Serra do Itambé, aos pés da qual entrei neste mundo de maldades, jamais seria ameaçada.

  2. Marcinha, embora eu não seja mineira, mas tendo adotado as terras das Gerais como lar, eu comungo desse seu desconforto e tristeza com todo esse rastro de destruição. Belíssima e oportuna reflexão! Obrigada!

  3. E continua a derrocada, a destruição do meio ambiente , tendo como justificativa o progresso. Os bolsos de alguns vao se enchendo, enquanto vidas de muitos são ceifadas. E o homem, bicho do homem, vai se corroendo e se corrompendo. Triste realidade. Parte da história feita com a derrubada do pau Brasil, com a exploração dos menos favorecidos e com a evasao da nossa riqueza e invasão de nossas terras. Tristeza.

    • Desconfio. Inclusive, Jane, que a tragédia desse fim de semana em Santa Maria de Itabira é obra das mineradoras. São três la. Assorearam o rio, escavaram os morros, desmataram. A imprensa mineira precisa investigar isso.

  4. Você me comoveu tanto, Marcinha, querida, que até chorei. Mulher danada, não podia deixar a gente ficar numa ilusão só descrevendo a paisagem, amiga? Lindo teu texto, tudo o que precisa ser dito está al.
    Fechada com você e não abro. Vamos então começar um movimento pra fazer essa gente reparar esses males todos? Eu topo, você sabe que pasmaceira não é o meu forte. Anda lá que eu vô!
    Beijo grande, e quando vier a Minas me avise. Até lá a gente não vai dizer que “Minas não há mais!”
    Beth Flkeury

    • Sim, Beth. É hora do mulherio mineiro se juntar e movimentar o Brasil com um Quem Ama não Destrói, a exemplo de Quem Ama não Mata, que virou o jogo na condenação do assassino de Angela Diniz. Já passou da hora.

  5. Belo texto, Marcinha. No início achei que seriam lindas palavras revelando um belo cenário, contando as tradições do estado, da cultura do seu povo, das coisas que dão saudade em quem é da terrinha. Mas você com sabedoria soube tocar na ferida e ver que as Minas Gerais estão longe de ser aquele paraíso, assim como acontece em tantas outras partes do país. O pior é que com as pessoas que hoje detém o poder, não vemos esperança. Só a boiada passando. E não é aquela boiada do mugido gostoso, nem do barulinho característico do ranger do carro de boi.

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