Tropeçando na semântica, por Hélia Ventura

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“Conhece o vocábulo escardinchar?” “Qual o feminino de cupim?” Tem coisas que me salvam. Uma delas é a boa memória. As primeiras frases deste texto foram resgatadas de lembranças da minha primeira aula de semântica no curso de Comunicação Social da Fafich. O ano: 1971, o mesmo em que entrei para a faculdade. Nunca havia tido aula de semântica. Pelo menos, não com este nome. Me lembro que a professora era loura, de cabelos cacheados, e usava óculos de aros dourados e lentes brancas, através das quais era possível desvendar seus olhos de um azul tristonho. Norma, seu nome. Deu aula para minha turma só por um período. Fiquei sabendo, pouco depois, que havia morrido. Não cheguei a ter esta confirmação. Naquela primeira aula, Norma distribuiu o texto impresso de uma crônica de Rubem Braga em que o autor criticava a prática adotada em algumas provas de concursos públicos nas quais utilizavam-se verdadeiras pegadinhas, questões sem grande utilidade e de desconhecimento da maioria dos mortais, como saber qual o feminino de cupim e o significado do verbo escardinchar. Vale a pena ler a crônica, quem ainda não leu. Fantástica, texto delicioso, como de resto toda a obra de Rubem Braga.

Passado tanto tempo, hoje ouso arriscar que os tropeços na nossa comunicação não requerem o uso de termos tão estapafúrdios, nem são verificados só nas provas esdrúxulas dos concursos públicos. Neste Brasilzão, sempre é possível encontrar grandes variações de significado nos vernáculos usados em nosso dia a dia. Para quem duvida, uma temporada na região Norte pode surpreender com termos e expressões totalmente desconhecidos em outras partes do país. Eu mesma fiquei sem nada entender quando perguntei a uma balconista de loja em Manaus até que horas o comércio ficava aberto no dia seguinte, um sábado, e ela me responder: “Até meia hora”. Tradução: meia hora=meio dia. Demorei um pouco pra descobrir, porque os manauaras não são muito dados a conversa, nem muito disponíveis para explicações. Sim, foi esta a minha impressão quando lá estive há um bocado de tempo. Pode ter mudado.

Mas não precisa sair de nosso estado para comprovar as discrepâncias da língua. Melhor seria dizer a riqueza da língua portuguesa. Tive uma experiência bem evidente quando deixei minha terra no Nordeste de Minas e me mudei para Belo Horizonte. Vivi uma experiência corriqueira, mas que ilustra bem o tema desta crônica. Uma tarde, necessitando de um utensílio para o preparo de café, saímos, eu e minha irmã, para comprá-lo. Entramos na primeira casa de utilidades domésticas que encontramos, onde fomos atendidas prontamente por um vendedor, que perguntou o que queríamos e a quem respondemos: um mancebo. Abrindo um largo sorriso e de braços também abertos, ele nos perguntou: “Eu sirvo?” Não esperamos mais nada. Saímos rápido e fomos procurar outra loja. Achamos bem próximo. A estas alturas, embora desconfiadas, não podíamos desistir. Precisávamos muito de um mancebo, peça fundamental para suprir o hábito de uma família incapaz de sobreviver sem tomar café. Imediatamente, fomos atendidas por um solícito rapaz a quem informamos do que precisávamos. A resposta veio rápida, também acompanhada de um sorriso: “Temos vários”. E apontou para o balcão, onde uma equipe de vendedores uniformizados, perfilados, aguardava os clientes. Desta vez, além de frustradas, saímos mal humoradas. Pior: com a certeza de que estavam debochando da gente. Certamente, por ter ficado bem claro que éramos mocinhas tolas do interior, pensamos. Desistimos da compra. Mas quando nos dirigíamos para o caminho de casa, deparamos com outra loja cujo rol de produtos não deixava dúvidas de que ali se vendia mancebo. Neste ponto, devo confessar que, para além da decepção acumulada em tão pouco espaço de tempo, sentíamos uma vontade incrível de tomar café. Talvez por causa dela, mesmo cansadas e bastante decepcionadas, decidimos jogar a última cartada. Desta vez fomos atendidas por um senhor de idade que nos pareceu bem simpático. Porém, ao ouvir nossa demanda, respondeu com uma pergunta: “E para que vocês querem um mancebo?” Mesmo achando absurdo o que ele queria saber, respondemos timidamente, quase num sussurro: “Para fazer café “. “Por acaso vocês não estariam procurando um velador?”, voltou a perguntar. Não respondemos. Nunca tínhamos ouvido aquela palavra, muito menos que ela dava nome a um equipamento utilizado para preparar café. Diante de nossa indecisão, sem dizer mais nada, ele nos conduziu para os fundos da loja. Alívio. Lá estava ele, o próprio, o insistentemente procurado. Que até podia se chamar velador, mas que, para nós, não passava de um mancebo.

 

[15/1/21]

 

14 COMMENTS

  1. Fantástica crônica, minha irmã preta Hélia Ventura, tia dos meus filhos branquelos e tia-avó dos meus netos, dois deles bolivarianos. Que texto mais gostoso de ler, tão bom quanto seus casos que sua privilegiada memória nos brindava em nossos encontros na minha casa da Rua Jaú. Isso quando não tínhamos ainda esse pandemônio que vivemos hoje. Parabéns, minha amiga. Continue nos dando esses presentes que enchem nossa alma de alegria e nos ensinam a simplicidade da vida contada pelo português correto de minha amiga querida.

  2. Só hoje vi sua crônica, Hélia. Delícia. mas tenho que confessar: não sei o que é velador. Muito menos mancebo. E garanto: aqui em casa a gente faz café sem nenhum deles. Só usamos pó, água, coador e suporte de coador.

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