Minha primeira feminista, por Mirtes Helena Scalioni

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Eram oito meninas morando naquela república no bairro Santo Antônio, perto da Fafich, a Faculdade de Ciências Humanas da UFMG onde sobravam intelectuais, loucura, modernidade e a esquerda possível naquele ano de 1973. Todas vieram do interior, eram virgens e ajuizadas, e queriam muito descobrir o mundo com suas delicias e perigos.

Ninguém sabe direito de onde surgiu a Zefa, que passava pela casa da Rua São domingos do Prata uma vez por semana para pegar a roupa suja, levar pra lavar, e entregar na semana seguinte, limpa e passada. Não foram necessários muitos encontros para que a intimidade entre as meninas e a lavadeira fosse estabelecida.

O dia da Zefa acabou ficando meio sagrado, todo mundo fazendo questão de estar em casa quando ela chegasse, mais para vê-la e ouvi-la do que para entregar e pegar as roupas. Magérrima, espalhafatosa, com pouquíssimos dentes, batom vermelho e um jeito de vestir nunca visto, ela falava e ria alto, gesticulava balançando as pulseiras e mexendo as mãos cheias de anéis baratos, andava pela pequena sala enquanto contava, sem cerimônias, suas histórias.

Não demorou muito até ela virar comadre Zefa, pois ficou grávida mais uma vez, teve mais um filho e levou todas, as oito, como madrinhas. O batizado da criança foi na Igreja de Lourdes, façanha tornada possível graças ao empenho de uma delas, que andava namorando um seminarista.

O que encantava na comadre Zefa era sua liberdade, talvez a que todas buscassem. Ela tinha acabado de ter o quarto filho, cada um com um pai. Usava minissaia, cuja cor ou estampa não tinha o menor compromisso com a blusa, a sandália ou o cinto. Nada combinando com nada. Mas ela parecia se sentir linda. Contava casos dos homens com os quais saía e nunca conseguiu entender a forma correta de tomar a pílula. Por mais que todas explicassem a ela sobre dias férteis, ovulação e espermatozoide, ela seguia na sua cartilha, às vezes tomando três comprimidos de uma só vez, quando achava que o macho com quem fosse estar naquela noite era mais atrevido. E, claro, outra gravidez vinha, depois outra e outra. Ninguém nunca soube a idade dela.

Uma vez, quando as meninas pediram uma receita para tirar manchas amareladas das calcinhas, sempre lavadas no banho e secadas no cano da cortina do box, não hesitou: “Isso não tem como clarear. É a força da sensação da natureza”. Todas entenderam.

Nada parecia abalar a comadre Zefa. Assim como engravidava, paria, criava, trabalhava, namorava, vivia. Um dia convidou todas para ir à casa dela num domingo. Queria mostrar o barraco para onde acabara de se mudar. As meninas descobriram, surpresas, que quando ela dizia que construiu, falava no sentido literal. Nos finais de semana, um atrás do outro, ela fazia a massa, juntava tijolo com tijolo, rebocava e caiava levantando paredes para abrigar a família. Tudo daquele jeito dela, sem eira nem beira nem prumo.

 

[8/1/21]

 

8 COMMENTS

  1. Parabéns, Mirtes, adorei sua bem escrita crônica, falando de uma geração cheia de sonhos e ideais,, e de uma personalidade bem livre e carismática, como a ZEFA . .

  2. Crônica sensacional! Imagino o impacto da Zefa nas cabeças das oito virgenzinhas. Só mesmo a Zefa, que acabei de ter o prazer de conhecer nesta deliciosa crônica da Mirtes Helena, craque no assunto.

  3. Que estória! Uma observação que tenho tido nos últimos tempos: Por qual razão jovens mulheres, adultas, têm sido chamadas de “meninas”? Muitas vezes penso que se trata de crianças. Me parece um certo “complexo de Peter Pan” feminino. Dizer moças está proibido?

  4. Parabéns Mirtes!
    Que leitura agradável!
    Emocionei lembrando também de dona Raimunda, não tinha o charme da Zefa, mas era uma senhora miudinha e muito tímida que passava toda semana em nossa casa para levar a roupa para lavar. Um tempo que se foi!

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