Era um menino que jogava bola na rua, brincava de finca no quintal, no jardim da casa na qual morava e fazia torneios de bolinha de gude com os amigos. Era um período difícil, tempos sombrios. Mas o menino cresceu, virou homem. Mas dos tempos de infância carrega imagens e histórias de um drama, que seus vizinhos contaram e que se refletem agora.
Pois é. Quando era menino, a Segunda Guerra Mundial ainda estava viva na memória. Muito se comentava dela. Dois de seus vizinhos lutaram na Itália. Um na infantaria, major Duboc. Outro, na aeronáutica, major Cançado. E eles contavam histórias de dificuldades.
A televisão mostrava imagens daquele tempo. Virava e mexia, o assunto eram as batalhas contra o nazismo. E o menino via filmes na TV. Ela chegou à casa dele em 1965, quando tinha sete anos de idade. Um filme, uma série, Combate, com Vic Morrow, era a preferida.
Nas historias que os majores contavam, muito lhe intrigava como eles faziam para comer. A impressão era de que, na guerra, tudo era terra arrasada. Não havia plantações. Contaram que os camponeses foram direcionados para a luta. Então, quem iria planta?. Quem iria criar o gado? Quem faria o pão de cada dia?
O menino lembra dos dois combatentes contando que comiam muita batata. Depois, ele viria saber que o tubérculo era a base da cozinha alemã. Faz sentido. Pois a imagem que o menino construiu foi a de que, na guerra, não se tem o que comer.
O tempo passou. O menino cresceu. E veio a pandemia do coronavírus. Vem junto com o pânico. De repente, as pessoas não podem mais conviver presencialmente. Terão de se isolar.
Opa! Na cabeça dele, de novo a Segunda Guerra. Vai faltar comida. Ele precisa se preparar. Tem asma, toma remédio para pressão. É do grupo de risco. É o primeiro de sua empresa a pedir para trabalhar de casa (home office). Não quer correr riscos. O benefício lhe é concedido. A partir de então, outros também não precisariam mais sair de casa para ir ao local de trabalho.
E o que o hoje homem faz assim que sai do serviço? Corre para o supermercado. Tem de se preparar para não viver a fome e a miséria dos tempos de guerra.
E compra arroz, vinte quilos; feijão, dez quilos; açúcar, oito quilos; sal, cinco quilos; carne, de boi e porco, vinte quilos; macarrão, dez quilos; sardinha, oito latas; tempero, oito embalagens; queijo, quinze quilos – é viciado em queijo –; requeijão de copo, dez unidades; pães de forma, quatro – não dá pra comprar muito, pois mofa –, biscoitos salgados, para substituir o pão; manteiga, cinco potes grandes. Isso e um monte de frutas, mais verdes, para durarem mais, como vegetais e tubérculos em lata. Depois, descobriu que entregavam em casa, o que facilitou.
Material de limpeza, sabonete, shampoo e creme dental, sabão em pó, aos montes. Quando saiu do supermercado, pensou que precisaria de uma camionete. Mas já tinha resolvido. O porta-malas e os bancos estavam abarrotados. Até o retrovisor estava tapado.
Ele fez isso pensando na guerra. E se faltar comida? Não, não pode arriscar. E seus filhos e netas, genro e nora? Pensou neles também. Assim, não precisaria sair no desespero para procurar comida. Passaria a sua Segunda Guerra mais tranquilo.
Pois é, esse menino, agora homem, sou eu, que agora, se sente na grande guerra!
[30/10/20]
Boas memórias, Ivan. Grande abraço, Beth Fleury
Primorosa crônica, prezado Ivan, retratando com muita sensibilidade o fantasma da fome, a crueza da pandemia, as lembranças amargas da guerra.
Parabéns!!!