Outro dia pediram que enviasse meu currículo. Lembrei-me imediatamente do escritor Rubem Alves, que já no entardecer da vida escreveu: “Minha alma é um bolso onde guardo minhas memórias vivas. Memórias vivas são aquelas que continuam presentes no corpo. Uma vez lembradas, o corpo ri, chora, comove-se, dança. O que a memória amou fica eterno, disse a poeta Adélia Prado. Mas há um outro tipo de memória que não foi eternizada pelo amor. Essas memórias não moram na alma. Moram nos arquivos da razão. São informações verdadeiras e inertes. Inertes são as memórias que a razão sabe, mas o corpo não ama. É o caso daquilo que normalmente se chama de ‘curriculum vitae’. Uma lista de informações inertes. Importantes do ponto de vista institucional, frequentemente exigidas, como comprovação de competência. Mas sua lembrança não me comove. Assim, acho que não merecem ser chamadas de ‘curriculum vitae’. A vida não é uma lista de informações”.
Para encurtar, porque o burocrático ficaria enorme, pensei que o meu currículo seria assim: já fiz coisas do arco da velha, até grudar os olhos em arco-íris depois da chuva, para ver se encontrava o duende com um pote de ouro. Já torrei ao Sol de muitas praias, até descascar toda, bronzear de novo e ficar tão morena que parecia outra pessoa. Nem pensar em filtro solar naquela época. Já morei na Serra do Cipó para ficar mais perto da natureza e observar o céu, as estrelas e os cometas. Por aqueles lados, sem luz elétrica em excesso nos postes, o céu parece outro. Lá, vi até bem-te-vi pedindo socorro na minha janela, por causa dos incêndios na mata.
Já deitei e rolei nas festas de Salvador, andei atrás do trio elétrico, troquei a noite pelo dia centenas de vezes, escrevendo poemas no guardanapo e conversando. Já me apaixonei várias vezes, mas fiquei também tempos sozinha. Até hoje tomo banho de cachoeira, como se fosse um passe espiritual. Já joguei moedas na Fontana di Trevi, em Roma, para voltar um dia. Já me perdi do grupo em Madri, até ser guiada pela Lua que mora dentro de mim.
Já andei pelas madrugadas sem fim de Belo Horizonte, frequentei bares até as portas se fecharem, andei em turma. Caí mil vezes ao subir em muros, por causa de uma miopia acentuada que meus pais só foram descobrir quando eu estava na escola.
Desci e subi montanhas para acampar em lugares selvagens, mas também desbravei campings organizados. Viajei por terras distantes, sem sair do lugar, principalmente por meio dos livros de Dostóievski, Jorge Amado, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Mário Vargas Lhosa, Clarice Lispector.
Não sei falar inglês nem alemão nem japonês nem mandarim, apesar do mundo globalizado. Gosto de ouvir francês, espanhol e italiano, pela sonoridade das palavras, que me levam em direção aos antepassados. Não tenho bens materiais, pois nunca dei importância a eles, mas tenho amigos que são meus avalistas. Acho que tenho mais créditos do que débitos com eles. Acreditam em mim, mesmo nas piores horas em que uma mulher inteligente percebe que não se planejou para o tempo que está vivendo agora. São tolerantes com as minhas angústias, idiossincrasias e uma rebeldia que não se cura nunca.
Tenho textos que já foram lidos no picadeiro do circo Orlando Orfei e que, hoje, estão inscritos no epitáfio da mulher de Federico, em Roma. Às vezes, morro de pena de mim, depois de escrever textos que detonam a minha dor. Já chutei mesa com copos, pratos e nem sei mais o quê, lembra-se Rogério Carnevale? Já fechei mil ciclos e abri outros que não se fecham nunca. Sou dependente de afeto e de pessoas do bem, que trocam conversas proveitosas. Sou viciada em leitura, mas hoje digo: só leio o que me interessa. Chega um tempo em que a gente escolhe até os textos para ler. Mas sempre encontro pessoas que me indicam livros com a profundidade necessária para os meus abismos.
Confesso que hoje, já no entardecer da vida, a exemplo de Rubem Alves não tenho muitos amigos. Acho que envelhecer é ficar mais seletiva, mais exigente, descartando tudo o que não é prioridade, o que incomoda, o que desvia do caminho. Puxa, não tenho mais paciência para futilidade. Só não quero ficar uma velha rabugenta, dessas que só falam em doenças e remédios para dores incontáveis no corpo.
Lutei muito como mulher e mãe. Como ser humano guerreei, como pessoa sonhei, como repórter tentei seguir o estilo de um dos meus mestres – entre muitos que me ensinaram tantas lições de vida – o jornalista e escritor Roberto Drummond, mas fiquei a ver navios por ser mulher, ter lutado e guerreado, ter sonhado e imaginado um mundo menos insano para todos. Com indignação e dor cheguei à exaustão, ao fim das minhas forças que não incluem rótulos, um mundo arrumadinho demais para as minhas incertezas. Estava farta, perdida nas minhas crenças que não estão enquadradas, engessadas ou fossilizadas. Lutei para mudar o mundo com a escrita.
Estava à míngua. Vivendo um dia de cada vez, sem pensar no amanhã, mas também sem me conformar com o sistema de lucro e de bens materiais, de consumismo sem fim, onde apenas uma pequena parcela tem garantia e direito de viver.
Preciso contar que estava contaminada pelo vírus da indiferença, da intolerância, do descaso neste país chamado Brasil. Pelas desigualdades sociais, pela injustiça, por escrever com o sangue da minha dor: “Aqui tudo bem, só que estou sangrando”, como me ensinou o compadre e mestre na arte do jornalismo literário. Em um tempo do “disse que”, “segundo fulano”, “de acordo com sicrano”, de um texto morno, arroz com feijão, de regras rígidas do jornalismo, ele me ensinou que repórter não é um robô que reproduz a fala do entrevistado entre aspas. Tem que desnudar a alma do entrevistado. Tem que colocar molho no texto, temperos da criatividade no arroz com feijão de todo o dia. Seduzir, emocionar o leitor para que ele tenha vontade de ler, de prosseguir. Tem que gastar sola do sapato, andar pela cidade. Ser um repórter anti-robô.
Depois que deixei o trabalho formal, sem ter me preparado para o terceiro tempo da vida, tive que continuar correndo atrás, para sobreviver, até que chegou o coronavírus, exigindo isolamento e cuidados. Pensei: E agora?
Tudo o que Roberto Drummond me ensinou parecia fora de moda, com tanta tecnologia, lives e vídeos. Será que a Covid-19 chegou para roubar ainda mais o que restou de mim?
O Universo conspirou e, de repente, fui convidada para trabalhar no Canto da Rua Emergencial, projeto da Pastoral Nacional do Povo da Rua, na Serraria Souza Pinto. Preciso contar que estou ajudando a plantar flores na dureza do asfalto e que descobri um mundo novo nessa pandemia.
Mergulhei nessa sociedade invisível das pessoas em situação de rua, para contar histórias de sofrimento e dor. Conheci Irmã Maria Cristina Bove, da Pastoral Nacional do Povo da Rua. Assim que conversei com ela, meu desalento foi embora, a tristeza tomou outro rumo, as decepções foram varridas como folhas ao vento. Nossa! Ainda há pessoas que pensam e falam a mesma linguagem? Ainda há pessoas que têm um olhar de generosidade e afeto para com o outro? Tive que me beliscar para ver se não estava sonhando.
Conhecer Cristina Bove e a equipe de trabalho da Rede Humanitária Canto da Rua Emergencial foi um toque na estrela. Até que, enfim, o meu mundo se desintoxicou, apesar do coronavírus. Como se olhasse no espelho da alma e enxergasse os sonhos sendo restaurados pelos melhores artífices. Estavam todos ali, guardados dentro de mim, mas cobertos de poeira e mofo. Foi como ressuscitar os sonhos pisoteados, como se a luz interna se acendesse outra vez. Uma espécie de farol iluminando o caminho de um mundo mais humano, de uma economia fraterna, da argamassa da vida, da sustentabilidade do ser. Irmã Cristina é dessas pessoas que conseguem colher flores na dureza do asfalto. É uma espécie de jardineira da cidade. Transforma indignação em ações. Fez com que plantasse meus sonhos em terra fértil, de novo. E, neste momento, eles estão desabrochando, quando já se anuncia a primavera.
[11/9/20]
Demais, como sempre. Parabéns!
Professora,
Que lrimegii ainda continuar amunibdascsyas letras. Como foi bom cikgervsyas flores no asfalto . Obrigado e quero mais.
Saiu truncado.
Professora,
Que privilégio ainda continuar aluno das suas letras. Como foi bom colher suas flores no asfalto . Obrigado e quero mais.
Déa, vc escreve cada dia mais bonito. Impossível não se emocionar com seus textos.
Grande Dea sou uma jornalista consciente de ter bebido não fontes de sua inspiração. Vá em paz querida, estaremos por aqui falando continuidade a seu legado de fé e esperança em um mundo melhor.
Makota Celinha Gonçalves
Que beleza! A minha mãe escolheu umas das suas crônicas do livro “Coração de mãe”, que dei de presente para ela há muito tempo, para ler na missa de sétimo dia. Graças a Deus, ela caminha para os 90 anos ainda com muita saúde. Abs.
Que bom, Déa, que seus sonhos estão sendo ressuscitados. Assim a gente continua sendo brindado com suas crônicas.
Que Deus te receba com toda pompa e gracas que você merece.
Fomos amigas na adolescência e desde cedo você já escrevia poesias e encantava com sua doçura e inteligência.
Estou torcendo por você… que seus sonhos floresçam lindamente e assim possa colher sorrisos, abraços, afetos e mais tudo de belo que houver…
Lendo todos seus artigos que encontro… a cada dia minha admiração cresce por vc e por tudo que vc nos presenteia com seu trabalho. Gratidão eterna a vc.
Maravilha esse relato! Vida bem vivida, sabedoria temperada com muito afeto.
Obrigada pelo texto. Me vi inteira nele. Beijo carinhoso.
Déa ,durante anos segui sua coluna ,e fiquei muoto feliz ao lhe ser apresentada em um evento
Vc falava no ritmo da escrita., ou o seu texto tinha o ritmo da sua fala.
Mais uma vez me identifico c vc ,e tentando achar um lugar p ajudar penso sempre nos moradores de rua e nas crianças a serem alfabetizadas. Parabéns pelo seu maravilhoso curticulo.
A VIDA já te contratou há muito tempo.
Dea que Curriculo de Vida invejável!
Eu contrataria você para aulas de “Ensina-me a Viver” e com certeza nesse Curso muitas trocas aconteceriam, historias seriam contadas e ouvidas (como você faz tão bem) e as pessoas se sentiriam ricas de vontade de viver muitas experiências e o Curso seria especialmente voltado para maiores de 60, a maioria já aposentados, podendo então dedicar tempo integral a parte pratica. Por favor garanta minha inscrição!
Carinho de Genô para você.
Que crônica maravilhosa! Que capacidade de colocar tantos sentimentos e sensações neste espaço, pequeno em tamanho mas enorme de talentos que aqui escrevem! Que bom saber que a vida sorriu pra você, mas está refletindo em muitos que necessitam. Vida longa a você e seu talento Déa, parabéns!
Salve Déa, velha guerreira, que enquanto lamenta, faz. E refaz-se, mulher e escritora, com a facilidade de quem cata feijão. Pedras fora, grãos dentro. Assim nos alimenta.
Beijos
E a Déa nos deixou.
Depois de me dar de presente esperanças renovadas.
Vivo agora as saudades, porque só as tenho de quem valeu a pena.
Déa, sangue nos olhos. Ganhamos a eternidade nos bares da vida. Lembra? Outros tempos. Seu currículo é notável. Bjos.
Querida Déa,
Siga em paz, por outros mundos.
Plantando e colhendo flores, esperanças, lutas e conquistas.
Vai Guerreira.
Tentaremos aqui, com humildade, tenacidade e galhardia, honrar seu currículo.
Abrace as estrelas por mim.
Triste com a sua partida. Perdemos um ser fora do tempo…
Meu adeus comovido para você, Déa Januzzi, que soube cultivar flores num jardim submerso. Em meu retorno a Minas, início deste século que é uma encarnação ao contrário dos sonhos que tivemos, a gente só se reencontrou na fila de uma ópera no Palácio das Artes. Você, com o filho amado a seu lado, bonitos e charmosos os dois. Fiquei feliz de revê-los, e me lembrar imediatamente do amigo comum. Roberto Drummond vai receber você com carinho, lá em cima, onde com certeza estão os bons, os belos e os de coração aberto.
Que beleza de texto e depoimento , querida Déa Januzzi! O espelho e o toque da estrela refletiram aqui e trouxe sua emoção, alegria e esperança! Feliz por você e grata por esse movimento bonito que tem rostos como da Irmã Cristina e o seu! Isso é Amor, sonho e poesia vivos! Grande abraço!