Eu era menina. E no passeio dos meus medos, nos monstros que viviam atrás das portas, eu imaginava o mundo. Eu era menino. E na observação dos bichos ou das primeiras páginas dos livros, eu sabia que a vida era imensa. Eu tinha no peito os registros das cores e das frases que mais gostava, namorava o espelho no teatro de uma conversa de caras e bocas. Eu rabiscava as letras, no ensaio tímido de um poema, sem saber ainda o tamanho do amor pelas palavras que conhecia e pelas não conhecia. E era esse o meu encanto dos dias e das noites, na experiência fantástica do vir a ser.
Eu cresci em meio a um vulcão de grandes acontecimentos. Guerras, pazes e finais de Copas do Mundo. Amores, desamores, publicidades de primeira página e mistérios indecifráveis em muitas outras. Porque crescer é descobrir as lacunas de fora e as de dentro, na ânsia de uma explicação ou dicionário que as pudesse preencher. Para mim, o correr do tempo embrulhava tudo. As crises políticas e os primeiros namoros. Os discos favoritos, listados ao lado dos planos de viagens. O gosto dos encontros e das despedidas, os fogos de artifício em uma noite de ano bom, o brilho dos olhos que me acendia a alma.
Eu entrei na faculdade sem saber como sairia. Deixando a visão se perder nos corredores da biblioteca e o coração se encontrar na palavra dos professores mais intensos. Eu deixei o pânico inundar as linhas do primeiro parágrafo, da primeira matéria, sem saber se conseguiria. E me embriaguei na risada da confissão dos colegas que sentiram o mesmo. Eu pesquisei e aprendi. Eu perguntei e respondi. Como um escultor que quebra as peças na puberdade do ofício. Como a maratona que só ensina o passo certo muito após o início. E eu deixei o coração me formar.
Um dia, muitos anos depois, em pleno trabalho, eu me dei conta que não sabia, ainda, quem era. Porque a passagem das estações e da rotina solapava um pedaço do meu destino. Um dia, mesmo após todas as reportagens, coberturas, notas sintéticas ou longas chamadas ao vivo, eu vivi. E era como se aquele viver remetesse à urgência de todos os outros, porque aquela era a vida de todas as vidas, a partir da minha. E então me transformei em jornalista.
Porque fui a dor de uma mãe de família, na porta da boate Kiss, na tragédia das lágrimas pela morte da filha. Um dia descobri, com o tormento das mãos a tremer, que eu era por inteiro a expressão da tristeza pura e bruta de uma família de Brumadinho, indignada pela insuficiência da vida sob um mar de lama e ganância. Era muito maior do que eu a verdade da miséria de uma pessoa vivendo nas ruas, de uma injustiça perpetrada em tribunal contra um inocente sem direito à fama ou advogado. Era tudo aquilo o jornalismo.
Um dia eu fui o cheiro inflamado do fogo e do gás lacrimogênio na multidão revolta das avenidas. E fui também o medo das censuras e ameaças de um poderoso sob investigação. Era eu a emoção inteira de um clássico de futebol ou a apoteose de um grande espetáculo. Morava em mim o castigo dos céus, nas chuvas e enchentes de verão, como a solidariedade embalada nos agasalho doados durante o inverno. E era essa a força que me consumia.
E hoje eu estou aqui, com o pulso a correr com força, novamente sendo tanto. Sou a imensidão de uma pandemia, um dos mais brutais fenômenos deste mundo, sendo lida, ouvida ou televisionada dentro das quatro paredes de uma casa em confinamento. Virei a incerteza de encontro ao desconhecido, a apresentação do medo de uma doença que não se sabe onde vai chegar. Sou a coragem de sair às ruas, microfone ou bloco de notas às mãos, para cumprir a missão de informar, mesmo em risco à própria saúde. Sou um pouco de cada família que chora sem velório, pela pessoa amada e vítima, diante da hipocrisia e da maldade dos que refutam os dados da ciência e da sensatez.
Em momentos como esse, em que a humanidade é tanta coisa, eu descubro quem eu sou e no que me tornei. E penso que não haveria como ser diferente. Sou ainda alguém que descobre o mundo e compartilha o que descobriu. E nessa comunhão, deixo a notícia ser maior do que a minha história. Você não me conhece. Você não sabe meu nome. Mas eu me tornei jornalista. Eu decidi estar aqui por você. E por isso eu sou, também, um pedaço de todos nós.
7 de abril de 2020. Homenagem do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais a todas e todos jornalistas os jornalistas do país, especialmente aqueles em atividade na cobertura da pandemia do novo coronavírus. Todo o nosso respeito e admiração.
Informação salva vidas.
[7/4/20]