A praga das ‘fake news’ em tempos de coronavírus e a valorização do jornalismo

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O velho jornalista recebe pelo Whatsapp a notícia: “Economista do FMI de 26 anos que era contra a quarentena morre de covid-19 nos EUA”.

É uma notícia sensacional, embora trágica. Um alerta para aqueles que não acreditam na pandemia. Uma comprovação de que a covid-19 não é “uma gripezinha” e que mata, sim, jovens, não só “velhinhos doentes, que iam morrer de qualquer jeito”. Uma confirmação de que a estratégia de quarentena, recomendada pela Organização Mundial de Saúde e repetida diariamente por jornalistas e infectologistas brasileiros está correta, apesar da campanha de descrédito lançada contra ela pelo presidente da República e que já resultou em manifestações de protesto de comerciantes, via internet e até em carreatas, inclusive em Belo Horizonte.

Por hábito e dever de ofício, o jornalista desconfia da notícia. Que diabo é “The News”, o saite que publicou a notícia? O jornalista faz uma pesquisa rápida no Google e não encontra a notícia. Vai ao saite do The New York Times e também no principal jornal americano não a encontra. Envia o link para o Comprova e fica aguardando. Comprova é uma iniciativa de jornalistas de 24 veículos que se dispõem a confirmar informações veiculadas na internet. “Tem dúvida sobre algum conteúdo? Não espalha. Comprova”, é o mote da iniciativa, que atende pelo zap (11) 9-9755-0022.

Em tempos de fake news, qualquer informação, mesmo vestida com roupagem de notícia séria, precisa passar por comprovação antes de merecer crédito. Não é isso que normalmente acontece, no entanto. É muito mais comum as pessoas curtirem, comentarem e até compartilharem notícias sem saber se são verdadeiras.

Para o jornalista profissional, é fácil sacar uma notícia falsa, pelo menos as mais grosseiras, e obrigação checar informações antes de publicar. O estudante aprende isso na escola e o foca é batizados pelos chefes ao entrar nas redações. A ingenuidade de acreditar numa informação falsa costuma ser traumática para o repórter. Que o diga um jornalista mineiro que fez longa carreira de sucesso na revista Veja mas entrou para a história pela barriga do “boimate”, uma brincadeira de 1º da Abril de coleguinhas americanos, nos anos 1980, que ele acreditou ser um furo de reportagem.

A internet, no entanto, virou furos e barrigas de cabeça pra baixo. Ao retirar dos veículos o monopólio da produção e distribuição de informações, eliminou também a barreira do jornalismo feito profissionalmente. O público em geral não tem o mesmo cuidado dos jornalistas. Fatos e fakes são misturados, verdades e mentiras se confundem. As pessoas parecem não discernir nem se importarem muito com isso; quem discerne e se importa gasta boa parte do tempo alertando os amigos virtuais.

No Brasil, as fake news caíram em terra fértil, previamente preparada. A imprensa não é santa; ainda está na memória dos brasileiros a campanha que levou ao impeachment da presidenta Dilma, que certamente não teria o mesmo desfecho sem a ampla cobertura dos principais veículos, com transmissões ao vivo, praticamente 24 horas por dia. Como o combate ao coronavírus, atualmente, ou mais.

É preciso separar a atuação dos veículos e o trabalho dos jornalistas. Jornalistas são profissionais formados em curso superior de jornalismo, que têm código de ética e se dedicam a um trabalho sério de informar a população sobre todas as coisas, especialmente as mais relevantes – uma epidemia, por exemplo. Empresas jornalísticas são, como o nome diz, empresas privadas (com exceção de algumas poucas empresas públicas), que visam ao lucro e têm linha editorial definida por seus proprietários, de acordo com sua ideologia mas também seus interesses.

Jornalistas raramente vão contra os fatos e as informações. O mesmo não acontece com os veículos, que, em defesa de interesses econômicos e políticos dos seus donos, contrariam fatos, dão dois pesos e duas medidas às informações. Durante o período de redemocratização da Nova República (1985-2016), essa transformação de jornais, revistas, emissoras de televisão e rádio em veículos ideológicos, com nítidas preferências políticas e engajados em campanhas, aumentou de forma constante, culminando com o golpe de 2016. A consequência foi um descrédito crescente da imprensa, tanto pelo público de esquerda quanto pelo de direita.

Como naquela história infantil em que um menino gritou várias vezes, de farra, que estava sendo atacado por um lobo, que ninguém acreditou nos seus gritos de pavor quando o lobo apareceu de verdade.

A grande imprensa brasileira, capitaneada pela Globo e pela Veja, especializou-se durante décadas em produzir matérias sensacionalistas e liderar campanhas de descrédito de autoridades. Em dois casos, liderou abertamente campanhas bem-sucedidas de impeachment de presidentes; em outros não teve sucesso. Muitos assassinatos de reputação foram cometidos em nome desse jornalismo sensacionalista, sendo o mais conhecido deles o caso da Escola Base. Quem se interessar pelo assunto deve ler a série de reportagens produzidas pelo jornalista Luís Nassif, que durante anos se debruçou sobre o tema.

A internet pegou a grande imprensa brasileira nessa crise de credibilidade e durante algum tempo as fake news se confundiram com o jornalismo sensacionalista; pseudo-reportagens de capa produzidas semanalmente pela Veja e aguardadas com horror pelos possíveis atingidos eram imediatamente disseminadas na internet, provocando terremotos políticos. Antes que qualquer resposta pudesse ser dada, o estrago estava feito, inclusive às vésperas de eleições, influenciando o resultado das urnas.

Da mesma forma, muitas iniciativas surgiram na internet justamente com o propósito de rebater e apresentar versões diferentes daquelas difundidas de maneira quase monolítica pela grande imprensa. Foi o período de prosperidade dos saites alternativos e do uso intenso das nascentes redes sociais por jornalistas que já não encontravam espaço nos veículos tradicionais. O próprio Nassif – jornalista de longa trajetória e sucesso nos principais veículos brasileiros, desde a década de 1970 – é um exemplo.

Da época das capas demolidoras da Veja até hoje muita água passou por debaixo da ponte, muita coisa mudou, na imprensa e na política brasileiras. A grande imprensa já não é tão grande nem tão influente quanto antes; a gigante Editora Abril, por exemplo, quebrou e sua Veja mudou de mãos. Produzir notícias falsas para internet tornou-se uma atividade tão profissional e tão eficiente, que envolve tantos recursos financeiros e tanta tecnologia de ponta, que perto dela o velho sensacionalismo da imprensa parece brincadeira de criança.

O presidente da maior potência do planeta foi eleito graças a notícias falsas agora chamadas de fake news, e o atual presidente brasileiro seguiu o mesmo modelo para, aproveitando-se das condições especiais criadas pelo golpe de 2016, chegar ao posto.

Assim como o Comprova, nos últimos anos surgiram diversas iniciativas de jornalistas e veículos tradicionais visando a checar informações e desmascarar fake news. Algumas têm foco não propriamente na notícia inventada profissionalmente, mas nas declarações de autoridades e políticos, cujos interesses se confundem com as informações que soltam em entrevistas e nas redes sociais, e que os veículos publicam, muitas vezes acriticamente.

A pandemia do coronavírus é ambiente propício para a propagação do vírus da fake news. Nos últimos dias, as agências de checagem de informações estão tendo muito trabalho, segundo a reportagem Epidemia de Fake News, escrita por Ethel Rudnitzki e Laura Scofield para a Agência Pública. Elas conversaram com representantes das agências Aos Fatos, Lupa, E-farsas e Estadão Verifica “para saber quais são as notícias falsas mais compartilhadas sobre o coronavírus, como se informar e o que eles estão fazendo para barrar o fluxo de desinformação”.

É consenso entre as agências de checagem que o número de notícias falsas aumentou desde o início da pandemia. A desinformação não tem precedentes, segundo Natália Leal, da Lupa. E as fakes news se propagam em velocidade muito maior do que o coronavírus. Como se trata de um trabalho profissional e mal intencionado, as fake news estão em busca do maior número de cliques, que dão a medida de leitura na internet e geram ganho financeiro.

Segundo a reportagem da Pública, a Rede Internacional de Fact-Checkers (IFCN), que une mais de cem veículos de jornalismo em 50 países, já fez mais de mil checagens sobre o coronavírus. A procura por essas checagens também multiplicou, o que é um bom sinal.

Nem só de má intenção, porém, vivem as fake news. Há também muitas informações preconceituosas, ingênuas e até verdadeiras, mas antigas e superadas, circulando nas redes sociais.

A única certeza, em tudo isso, é que as informações corretas, que orientam a população, que ajudam a impedir o pânico, combater a pandemia e iluminar o futuro do Brasil nesses dias tenebrosos, estão sendo produzidas, mais do que nunca, pelo velho e bom jornalismo, praticado por profissionais, com método e ética.

Nunca é demais repetir: desinformação mata, informação salva vidas.

Em tempo: o pasquitanês Rehman Shukr de fato morreu em decorrência de complicações do coronavírus. E também Landon Spradlin, um pastor e músico americano, de 66 anos, que usava as redes sociais para criticar a “histeria” provocada pela pandemia. Seguidor de Donald Trump, o pastor dizia que o coronavírus era uma invenção da imprensa para prejudicar a reeleição do presidente americano. As notícias foram dadas pela veterana Heloísa Vilela, correspondente da Rede Record em Nova York, no telejornal de sexta-feira 27/3 e já podem também ser lidas em portais jornalísticos como o UOL. As duas mortes tiveram impacto na opinião pública dos EUA, país que superou a China em número de casos de covid-19. Trump, por sua vez, depois de fazer pouco do coronavírus, abandonou a ideologia neoliberal para liderar o país no combate à pandemia, destinando a ele os maiores investimentos estatais na economia desde a II Guerra Mundial.

[28/3/20]

 

 

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