Por Ângela Carrato, na edição 853 do Observatório da Imprensa, em 2/6/2015.*
Como era de se esperar, a mídia mineira não publicou uma linha sobre a sentença da juíza Adriana Goulart de Sena Orsini, titular da 47ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, em relação ao julgamento do processo movido pelo jornal Hoje Em Dia contra o jornalista Aloísio Morais Martins. A empresa recorreu à Justiça para que fosse confirmada a “punição exemplar” imposta ao profissional e perdeu.
A sentença da juíza Adriana Orsini, publicada em 11 de maio, tem tudo para se transformar em jurisprudência sobre o assunto, especialmente num momento em que vigora no Brasil uma total desregulamentação da mídia, com os empregadores acreditando que podem tudo. Acreditam que podem, inclusive, impedir que seus funcionários se manifestem livremente sobre assuntos políticos em suas páginas pessoais nas redes sociais.
Em outubro de 2014, quando o problema ocorreu, Aloísio Morais exercia a função de editor-adjunto do Hoje Em Dia. No dia seguinte ao segundo turno da eleição presidencial, ele compartilhou, em sua página no Facebook, críticas do sociólogo e professor aposentado da UFMG, Paulo Saturnino Figueiredo, sobre as discrepâncias apresentadas pela pesquisa do instituto Veritá em relação aos demais institutos. O Veritá foi o único a prever a vitória do candidato do PSDB, Aécio Neves, por larga vantagem de votos. Fato que não se confirmou. E o jornal Hoje Em Dia foi o único a publicar, com destaque em sua capa, os dados da pesquisa do instituto Veritás na véspera da eleição.
Punição e salários suspensos
A direção do Hoje Em Dia considerou que a publicação do jornalista “denegria” a imagem do jornal e aplicou-lhe o que denominou de “punição exemplar”. Aloísio Morais foi afastado de suas funções, teve seus salários suspensos, com a empresa entrando na Justiça contra ele com o objetivo de demiti-lo “por justa causa”. Aloísio é ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais e atualmente integra a sua diretoria. Diante desta situação, o jornalista não teve alternativa a não ser também ingressar na Justiça a fim de defender seus direitos.
Como já tive oportunidade de publicar em artigo neste Observatório (ver “Imprensa Mineira – Por quem os sinos dobram”), depois de terem participado ativamente das eleições em apoio ao candidato oposicionista Aécio Neves (PSDB), os principais jornais mineiros deram início a uma espécie de “caça às bruxas”, assediando, constrangendo, ameaçando e demitindo jornalistas que não rezam pela cartilha tucana. Neste sentido, a ação do Hoje Em Dia contra Aloísio Morais talvez seja das mais emblemáticas, porque visava atingir não só um funcionário com 27 anos de casa, como igualmente atingir um destacado representante da categoria.
Em uma sentença de 13 páginas, onde demonstra conhecer profundamente a literatura envolvendo liberdade de expressão e também técnicas de jornalismo, a juíza Adriana Orsini lembra que:
“A controvérsia dos autos gravita em grande medida se a publicação do requerido em sua página do Facebook extrapolou ou não os limites de sua liberdade de expressão e se atingiu ou não a honra e boa fama de sua empregadora. É importante, desde já, realçar e afirmar que as redes sociais são marcadas pelo tom informal, sendo corriqueiro e diuturno que seus usuários emitam opiniões/comentários de maneira despretensiosa.”
A juíza prossegue lembrando que nos dias atuais “é impossível desconhecer a importância do Facebook como um meio ativo de comunicação informal, de compartilhamentos desde textos, fotos, memes, comentários, reportagens, além de ser extensão de espaço de expressão de direitos da personalidade, sem falar, da utilização da rede social Facebook como espaço de interação pessoal, familiar e de amizade”.
Some-se a isso, assinala, que não só a própria empresa possui página no Facebook como não havia qualquer proibição aos jornalistas de utilizarem esta ferramenta, por se tratar de importante conexão com notícias e acontecimentos no dia a dia da redação.
Sobre a crítica ao resultado da pesquisa, ponto central da ação do jornal contra Aloísio Morais, a juíza analisou da seguinte forma:
(…) “Certo é que o jornal publicou pesquisas com resultados bem distintos. Em seu poder de decisão editorial escolheu como capa os dados dissonantes. E, ao escolher como capa do jornal pesquisa destoante, assumiu o risco de provocar reações variadas de seus leitores, inclusive seus próprios empregados, como também que estas pessoas reagissem com perplexidade e fizessem comentários nas redes sociais acerca das divergências observadas.”
“Jornal tendencioso”
A juíza lembrou ainda que, em função disso, vários leitores do próprio Hoje Em Dia, na página do próprio jornal, em 22 de outubro de 2014, mostraram sua indignação, referindo-se à publicação através de expressões como “jornal aecista” e “jornal tendencioso”, demonstrando claro ceticismo quanto aos resultados das pesquisas publicadas.
Razão pela qual salienta que, tanto na postagem do professor Paulo Sarturnino quanto na sua republicação por Aloísio Morais não há críticas ao jornal, mas, sim, como disse o próprio Paulo Saturnino em depoimento, “às loucuras de certos institutos de pesquisa”, lembrando que as postagens tiveram como foco, no dia seguinte à eleição, não o jornal, mas a disparidade da pesquisa publicada um dia antes da eleição com o resultado das urnas.
Diante disso, a juíza entendeu que “a utilização de rede social, ambiente notoriamente informal, para expressar críticas, seja a partidos, candidatos ou a imprensa, é mera decorrência do exercício dos direitos constitucionais e políticos de qualquer cidadão”, frisando que o comentário realizado foi breve e não foge à forma e ao conteúdo de inúmeros outros comentários publicados nas redes sociais ou nos próprios espaços disponibilizados pelos jornais na internet, sendo nitidamente informal e despretensioso, em conversa social com seus amigos do Facebook.
Indo além, ela afirma que o exame dos documentos “demonstra que os resultados das pesquisas eleitorais publicadas pelo requerente já eram objeto de consideráveis críticas, não tendo o comentário descrito nenhum fato específico ou apresentado qualquer elemento que pudesse ser interpretado como uma acusação formal contra o jornal Hoje em Dia, seu empregador, conforme se observa pela transcrição do comentário do usuário e testemunha nos autos, Paulo Saturnino”.
Como testemunha de Aloísio, o sociólogo Paulo Saturnino fez um veemente depoimento contra a situação reinante na imprensa nacional e em especial na imprensa mineira, lembrando os problemas enfrentados pelos jornalistas diante da censura aeciana que vigorou no estado por 12 anos, assinalando “não ser claro ainda como esta censura se comportará de agora em diante”.
A juíza destacou que “atribuir gravidade máxima justrabalhista à expressão de pensamento, publicado em tal espaço de rede social, seria desconsiderar a realidade deste novo meio de comunicação, que possui como inequívoco diferencial o fato de ser um lugar informal e aberto a expressão de opiniões”. Ela foi além lembrando que o compartilhamento da foto com manchetes de três edições do jornal Hoje em Dia que reproduziam resultados de pesquisas atribuindo vantagem a determinado candidato, também não representa excesso que dê ensejo ao acolhimento de falta grave capaz de justificar a ruptura do contrato de trabalho, como pretendia a direção do Hoje Em Dia.
Liberdade de expressão para todos
Funcionário do Hoje Em Dia há quase três décadas, Aloísio Morais já exerceu as mais diversas funções na publicação – de editor de assuntos gerias, a editor de política e da primeira página –, além de ter atuação destacada no meio sindical mineiro e nacional, tudo indicando que seu empregador procurava também com a ação, passar por cima não só do que determina a Constituição brasileira a respeito da liberdade de expressão, mas também no que diz respeito à imunidade que possui um dirigente sindical. Razão pela qual a juíza enfatiza que:
“Lendo a conclamada defesa a liberdade de imprensa do jornal, ora requerente, seria razoável supor e defender que a liberdade de expressão seja não apenas defendida, mas garantida aos seus próprios empregados com o mesmo ardor. Aliás, como sói acontecer em ambientes cujas relações se estabelecem entre sujeitos, em ambientes de trabalho cuja ecologia nos aponta para a sustentabilidade daquele meio e das ações nele empreendidas, como também para a condição sine qua non de ser um meio ambiente saudável, livre de assédio e de discriminação.”
Por tudo isso, a sentença por ela proferida enfatiza que:
“O requerido utilizou-se de sua página pessoal da rede social Facebook para expressar sua opinião/questionamento sobre matéria corriqueira à época das eleições presidenciais. Mesmo que se entendesse que a citação feita, no contexto da publicação, seria uma crítica direcionada ao jornal Hoje em Dia, por sua forma, teor e local de publicação, de modo algum se revestiria da gravidade de um atentado a honra e boa fama do empregador a ensejar a falta grave pretendida.”
Por isso, ela sentencia que “o fato não constitui falta a autorizar o rompimento de um contrato de trabalho de 27 (vinte e sete) anos de um dirigente sindical, pois não há nos autos nada que justifique a pretendida ruptura causada do contrato de emprego entre requerente e requerido”.
“Embora seja possível averiguar a desarrazoabilidade da extinção de um contrato de trabalho de 27 anos pelos fatos examinados, há ainda uma segunda lesão, aquele de índole coletiva e que não passa ao largo da análise acurada por este juízo de 1º grau. A dispensa de um dos representantes sindicais, por se tratar de penalidade máxima e claramente excessiva do empregador, representaria, por um lado, exemplo de abusivo rigor empresarial a todos os empregados e, de outro, o enfraquecimento da entidade sindical, que perderia um dos seus líderes e conhecedores dos problemas de toda a categoria.”
A juíza lembra ainda que a liberdade sindical foi resguardada mesmo nos momentos de maior atribulação política no país.
“Na época do regime militar no Brasil, onde esses direitos de personalidade eram postergados, os Tribunais do Trabalho os respeitavam, não considerando como justa causa as convicções políticas ou ideológicas do empregado. Com amparo no texto constitucional, a jurisprudência trabalhista brasileira considerou nula a despedida de empregado, porque verificada com autêntica restrição ao princípio de liberdade de expressão, garantido no art. 5º, inciso IV da Constituição da República de 1988, e determinou a reintegração do empregado” (in Proteção à Intimidade do Empregado, São Paulo, LTr, 2009, p. 114).
Vitória de todos jornalistas
Razão pela qual a juíza enfatiza ainda que:
“Nunca é demais relembrar que o requerido é empregado com 27 anos de serviços prestados e, segundo depoimento de colegas de trabalho, goza do respeito e consideração de todos. O requerido é um dirigente sindical e, quando a requerente se volta com virulência desproporcional ao ocorrido e em tratamento incompatível, o tema da discriminação pela condição de sindicalista, defensor de estabilidade provisória que gera limite à fruição do poder empregatício, não pode passar ao largo do caso dos autos, devendo ser enfrentada.”
Por último, mas não menos importante, a juíza Orsini ainda dá uma lição de respeito e sociabilidade aos empregadores, ao lembrar que:
“Se a publicação em exame causou algum desconforto ou constrangimento dentro da empresa, especialmente entre os envolvidos, seria plenamente compreensível que a empresa convocasse o empregado a prestar esclarecimentos quanto ao teor da publicação e, após ouvi-lo, garantindo-lhe a oportunidade de falar e explicar o seu post, em autêntico diálogo, relacional e propositivo, tomasse eventuais medidas que pudessem se mostrar adequadas ao caso em exame. O sentido pedagógico, o exercício dialógico e não autoritário do poder empregatício poderia ter sido exercido e, inclusive, gerar aprendizado e intercompreensão aos envolvidos e a potencialidade da solução do conflito de forma dialógica e de assunção de responsabilidade de todos é medida salutar em contextos como tais. No entanto, a tentativa de imputar ao requerido falta grave por expressar opinião em sua página pessoal de rede social com menções vagas, alusões, meras indiretas ou ironias, por meio de citação de terceiro à opção das pesquisas na época da eleição, revela inequívoco excesso do exercício do poder empregatício, que se arvora no direito de analisar todas as manifestações de opinião ou não do empregado, sejam elas solenes ou não, expressas na própria empresa ou fora do ambiente de trabalho.”
Ainda cabe recurso por parte do empregador, mas dificilmente uma sentença nestes termos será alterada. Por isso, mais do que fazer justiça a um profissional, esta sentença tem tudo para se tornar referência jurídica para jornalistas em se tratando do uso de redes sociais. Afinal, as redes sociais existem para garantir o direito à expressão de todos, inclusive nós, jornalistas. Caso contrário, os jornalistas se tornariam nos únicos cidadãos brasileiros a experimentar dupla censura por parte dos empregadores: em seu trabalho, as redações, e também no mundo virtual.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.